A leitura de uma entrevista de Harold Bloom (aqui) e de um texto de
Miguel Sanches Neto (aqui) me trouxe de volta
ao tema do cânone literário.
O culturalismo em voga descobriu cedo que o
cânone é menos um problema estético que político. Aliás, estética, na linguagem
desmitificadora dos estudos culturais, não passa de uma política mal
disfarçada. O cânone é um trambique de machos adultos brancos eurocentristas. A
pobreza flagrante desse juízo – que me poupo de contra-argumentar porque já o
fiz em outros textos – tem várias
facetas nocivas, das quais uma das piores é a descrença na universalidade do
discurso literário. A literatura não fala mais ao Homem (sim, é uma noção
complexa e com um largo percurso histórico...); fala ao rico ou ao pobre, ao
branco ou ao negro, à mulher e ao homem, ao heterossexual ou ao homossexual.
Na lógica dos estudos culturais, a literatura
é uma arena de embates culturais e, portanto, a crítica literária franca não
passa de um modo de fazer política cultural. Fico imaginando, e lamentando, os
subprodutos literários que nascem no bojo dessas concepções! E não me venham
dizer que um J. M. Coetzee ou um García Marquez, por serem queridinhos desses
teóricos, compartilham dessas concepções estreitas. Com poucas exceções, os
grandes autores do século XX apostaram numa concepção de literatura como um
espaço sincrônico e homogêneo, capaz de rechaçar barreiras étnicas, fronteiras
nacionais etc. Em Eliot, em Borges, em Valéry, em Octavio Paz, em Nabokov, em
Pessoa, enfim, no mais fino que a literatura produziu no século XX, domina a
crença de que a literatura é um espaço sem tempo e sem fronteiras. Não um mundo
angelical, um espaço apinhado querubins benevolentes – que Pound o diga–, mas,
mesmo assim, um mundo aberto ao Homem.
Quanto mais a politização do cânone avança, mais
aquela crença decai e mais panfletos em forma de literatura são despejados no
mundo. Mas até aí tudo bem: lê estes panfletos quem quer; ninguém está proibido
de virar as costas a eles e tomar às mãos um Homero ou um Dante. O problema é
quando, em nome da destruição ou alargamento desse cânone, os culturalistas –
que, pelo menos nos Departamentos de Letras, são bem representados, não raras
vezes sendo o grupo quantitativamente dominante – põe seu aparelho teórico a
funcionar sobre a obra de Shakespeare, Camões, Cervantes etc, reduzindo-os a
vilões ou mocinhos da ordem política corretinha do dia. Nesta operação, as
questões (muito mais amplas e complexas) que estas obras tentaram refletir são
escamoteadas, e a leitura deixa de ser descoberta e crescimento interior para tornar-se
acerto de contas – dos mais mesquinhos – com o passado. Ora, se o aluno se
reduz a ler, na maior parte do tempo, lixo panfletário e quando lê um clássico
o faz, por orientação do professor, como um ressentido acerto de contas com o
passado, que esperar dessa celeuma: que saiam alunos capazes de avaliar um
texto? Capazes de apontar por que o Aleph
do Paulo Coelho é uma leitura pobre, reducionista e emburrecedora do Aleph de Jorge Luis Borges?
Não adianta, de jeito algum, ler gigantes com
um olhar tão nanico. Não escamoteio as dificuldades, hoje, de se buscar
fundamentos e valores universais. Mas sei que o fatiamento do espaço literário
em guetos políticos só é solução se quisermos aniquilar a liberdade de escolha e
a consciência crítica de nossos alunos – tratando-os como zumbis que precisam
ser doutrinados. Dizer que a literatura fala ao Homem é uma ilusão? É quase
certo que sim. Mas, pelo menos, os resultados pedagógicos dessa ilusão são mais
frutuosos – desde que não se trate de uma adoração a uma imagem estática, desde
que este Homem não seja um esquema oco ou uma zombaria a todos e a cada um.
P.S.: Texto escrito em janeiro de 2012. Nunca
lhe dei continuidade, mas espero um dia escrever mais a respeito do tema.