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sexta-feira, 16 de novembro de 2012

O público minoritário de poesia – resposta a um amigo


Um amigo me sugere que fale sobre o público minoritário da poesia. Por que tão poucos são os leitores de poesia? Se eu não estivesse tão atarefado e fosse mais prudente pararia para fazer uma pesquisa, pois se trata de uma questão delicada e complexa. Dadas as circunstâncias, deixo meus pruridos de pesquisador de lado e esboço uma resposta das mais breve possíveis.

Antes de tudo, é preciso responder: que tipo de poesia tem público minoritário? Suponho que, como eu, meu amigo esteja pensando na poesia da literatura “oficial”, da “alta” literatura. Pois o cordel (ao menos aqui no Nordeste) e as letras de músicas têm um público cativo que não pode ser desconsiderado. Ambos comunicam experiências vivas aos seus públicos, ambos obtêm respostas empolgadas e empolgantes desse público. Mas a poesia da alta literatura parece que é produzida para o consumo interno: todos os grandes leitores dessa poesia que eu conheço, a começar por mim, também a produzem. Trata-se, sem mais nem menos, de uma seita, como já a chamou Octavio Paz. Por que essa poesia tem um público tão limitado? Arrisco cinco hipóteses, consciente de que darei uma explicação bastante incompleta e nada exaustiva.

Em primeiro lugar, a poesia moderna, pós-baudelairiana, com seu hermetismo, sua metalinguagem, sua ironia autoconsciente, seu horror à experiência comum, é uma poesia que se quer, e se faz, contracomunicativa, uma coisa de iniciados. Quase todas as vanguardas seguiram o mesmo caminho: o gosto pelo hermetismo, o metalinguismo, a experimentação sem freios e o menoscabo pela comunicação. Há exceções, é claro, há os Whitmans, os Nerudas, os Cabrais.

Em segundo lugar, a chamada cultura de massa destronou a poesia (a grande literatura em geral) de sua função formativa-informativa. O prazer difícil da poesia virou coisa de pária – de intelectuais ressentidos, de eruditos nostálgicos, de humanistas esnobes etc. Não concordo nem um pouco que haja uma ruptura radical entre alta cultura e cultura de massa; da mesma forma, não demonizo a cultura massiva. Mas que ela reelaborou espertamente em pautas mais suaves e palatáveis as grandes conquistas formais da alta literatura não resta dúvida.

Em terceiro lugar, há o medo imbecil de certos platonistas de plantão de que a poesia seja corruptora dos bons costumes.

Em quarto lugar, há os platonistas aos avessos que querem reduzir a poesia à pregação política e/ou moral. A poesia como instrumento de promoção da justiça social. É a praga do politicamente correto (que nem sempre é tão correto quanto se pensa).  

Em quinto lugar, há um fenômeno que talvez não seja mundial, mas tipicamente brasileiro: o coro de professores de literatura incompetentes, em todos os níveis de ensino, que vivem repisando o mantra de que poesia é difícil. Estes palradores muitas vezes preferem o romance, penso eu, porque é mais fácil divagar no comentário de obras romanescas do que no de um poema: é quase impossível interpretar um poema sem virar e revirar sua carnadura, sua arquitetura.

Tudo isso são considerações genéricas. Haveria muito o que se falar contra boa parte da poesia que se faz hoje, buscando argumentar que muitos poetas estão se lixando para o fato de que só seus pares os leiam. Mas me furto de tratar disso agora por falta de tempo e de leituras mais sistemáticas das obras de meus confrades.


quinta-feira, 8 de novembro de 2012

9 - A salvação (EUA, 2009), de Shane Acker


Citar – isto é, aludir, parodiar, parafrasear, pastichar – é a regra de ouro de toda obra que queira parecer profunda. Uma pitada de referência mitológica, uma citação bíblica, uma piscada de olho para Homero: pronto, eis que surge uma obra densa, profunda! Raramente se pergunta pela qualidade e a adequação da citação. O simples fato de ali, naquele seriado preguiçoso ou naquele filminho vagabundo, ser notório uma alusão ao Gênesis ou ao Apocalipse é suficiente para se atestar a profundidade da obra.

Se eu pudesse apontar uma única falha nesse belo 9 - A salvação (2009) seria esta: a citação pseudoculta. Apinhado de citações, o filme investe na retomada de um topos consagrado na literatura e no cinema – a vida num mundo pós-apocalíptico, dominado por máquinas perversas. Em 9, a humanidade já foi para o beleléu, engolida pelas máquinas inteligentes gestadas, “para facilitar o progresso da raça humana”, por um cientista (advinha?) de bom coração mas... ingênuo, que não sabia do mal uso que fariam com sua engenhoca.  Antes de morrer, o nobre sábio constrói bonequinhos toscos, aos quais – a velha aliança entre ciência e magia! – doa sua alma, na esperança de redimir seu erro e salvar uma porção da humanidade. O último desses bonequinhos que ganha vida é 9, e é ele o Redentor. Evito aqui relatar o enredo com detalhes, mas posso adiantar que nos nove bonequinhos que protagonizam o filme o diretor e a roteirista concentram notável galeria de arquétipos, através dos quais movem sem pejo um dilúvio de clichês: há o asceta covarde, modelado na fôrma do ressentido nietzschiano, pregando sua moral de rebanho e disseminando seu ódio a tudo que é nobre e forte (embora, ao fim, ele se redima, num dos poucos lances de rebeldia do diretor contra a rigidez dos topoi que ele põe em movimento); há o velho sábio, a femme fatale, o brutamonte idiota; o inventor, o artista-profeta e, claro, o redentor de todos eles.

É preciso dizer que 9 surgiu de um magnífico curta homônimo, também de Shane Acker. Sem dúvida, o curta é infinitamente melhor que o longa, por dois motivos: mantém a mesma soberbia visual e explica pouco. O longa, ao querer explicar demais, mata a poesia por excesso de didatismo, se enrola em clichês, se perde em excessivas alusões (bíblicas, literárias, cinematográficas e até cabalísticas) cuja maior funcionalidade e querer dar um ar cult ao filme.

Na verdade, não vejo por que esse desejo de querer parecer cult. Implico com este fato porque considero que a pretensão desbragada do diretor e da roteirista acabou por abalar o equilíbrio da obra; as inserções cults e os subtextos políticos e metafísicos funcionaram, a meu ver, como ruídos. O que de fato é soberbo em 9 - A salvação é sua concepção visual, desde a constituição do cenário (fruto, não tenho dúvida, de acurada pesquisa histórica), passando pelo designer dos bonecos e máquinas, até a funcionalíssima fotografia, soturna, bastante integrada à atmosfera da obra.

Nunca é demais lembrar que Tim Burton foi o produtor desse filme, e é visível, para quem conhece seu estilo, o peso de sua mão da concepção da obra. Não só isso: Burton levou seu trilheiro favorito, Danny Elfman, que fez o trabalho musical à altura da fotografia e do cenário. Que esses dados, porém, não sirvam para tirar o mérito de Shane Acker; quem tiver dúvida, basta assistir ao curta que deu origem ao filme em discussão. Shane chegou para ficar; aposto minhas fichas em seu próximo longa, independente de quem o produza. Ficarei de olho também na Focus Features, que antes já produzira Coraline e o mundo secreto, uma das melhores animações da década.