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quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

O silêncio (Sokout, Irã, 1998), de Mohsen Makhmalbaf


A filmografia Mohsen Makhmalbaf é das mais irregulares e fascinantes do cinema atual. Ele tanto pode executar uma reflexão densa e poética sobre o cinema e sua força de coesão social, como em Um instante de inocência (1996), como partir para um denuncismo ingênuo, ocidentalista e tecnicamente cheio de irregularidades, como em A caminho de Kandahar (2001); pode desfiar um filosofismo meio requentado, como em O grito das formigas (2006) ou atingir o cerne da poesia das imagens através de manipulações simples e de um roteiro sem nenhum desejo doutrinário ou moralizante, como neste O silêncio (1998).

O silêncio é uma obra ímpar cuja singularidade reside, em grande parte, no trabalho inteligente de manipulação dos sons. O artificialismo do filme reside basicamente aí: o som deixa de servir para fins naturalistas e se torna um agente produtor de espaços subjetivos e fonte de simbolismo. No mais, é um desses filmes a que rótulo neo-realista pode ser usado sem parecer demasiado abuso. Ora, o contraste entre a imagem quase sempre naturalista – há momentos que demonstram preciosismo na montagem, sim, mas o plano-seqüência, geradora de “imagem-fato” (André Bazin), que dá sensação de realismo, é o que predomina – e o som artificialmente manipulado gera um efeito estético dos mais interessantes. Diria que O silêncio tenta operar um alargamento de nossas possibilidades de construção da realidade, substituindo a prevalência da imagem na produção de sentidos pelo som. O som é o agente criador, poiético, por excelência do filme. Para entendermos melhor isso, adentremos um pouco no enredo de O silêncio.

Khorshid (sol, em farsi) é um menino cego que vive numa vila no Irã. Seu pai viajou para Rússia e as condições materiais em que vive são das mais precárias. A casa é alugada e o dono ameaça jogá-los fora; Khorshid trabalha como afinador de instrumentos musicais e sua mãe passa o dia pescando. Vê-se a impotência da mãe em lidar com a situação, sempre recorrendo ao filho, pedindo-lhe para falar com o patrão a fim de conseguir o dinheiro do aluguel. O arco temporal do filme cobre cinco dias na vida do protagonista, tempo em que ele ou levará o dinheiro ou será expulso da casa. O enredo resume-se à trajetória casa-trabalho, tendo na ida de ônibus ao trabalho seus momentos (digamos com algum exagero) mais dramáticos.

Detesto resumir enredos de filmes, mas aqui a síntese ligeira acima servirá para alguns esclarecimentos. Cego que é, Khorshid desenvolveu uma audição prodigiosa e, apaixonado por música, mormente pela Quinta Sinfonia de Beethoven, tem a facilidade de transformar em música os barulhos do cotidiano (como disse Ambrose Bierce, barulho é “música não domesticada”). Aqui cabe uma comparação que, em princípio, pode parecer disparatada: a forma como a cegueira é representada em O silêncio e no blockbuster Demolidor - O homem sem medo (Daredevil, EUA, 2003). Em ambos os filmes, a cegueira traz como contrapartida positiva um refinamento de outros sentidos (tato e audição em especial); porém, n’O demolidor o herói, ao tocar nas coisas e fazê-las vibrar, tem a percepção rigorosamente perfeita do ambiente em que se encontra; em O silêncio Khorshid também reconstrói o mundo via audição, mas, enquanto lá a reconstrução é tão exata que a cegueira praticamente deixa de ser um problema, aqui a reconstrução é subjetivo-poética: guia-se pela harmonia dos sons e dá ao portador um mundo diferente daquele percebido pela visão. Arriscando uma generalização a partir dessa macérrima base empírica, diria que temos aí o desenho do contraste entre o realismo ilusionista, de pretensões objetivas, do cinema de entretenimento estadunidense e o realismo poético do cinema de autor iraniano, onde a pretensão de uma representação objetiva do mundo via cinema é rechaçada, quando não denunciada conscientemente nas próprias malhas do filme[1].

Há uma “realidade” que construímos com a visão e outra que o cego constrói via audição. Mohsen Makhmalbaf nos desconcerta lembrando aquela antiguíssima premissa do empirismo segundo a qual, segundo John Locke, nada vem à mente se não passar pelos sentidos. Ora, se me falta um sentido, o mundo para mim será diferente (não se entenda: deficiente). Mas é claro que o filme está longe de ser uma ilustração de uma postura filosófica que já em Kant fora refutada.  O filme, menos que comprovar teses filosóficas, quer é nos mostrar o poder poiético, isto é, criador do ouvido. Um som de um instrumento musical ou uma chuva evocam no cego miríades de possibilidades e, se este cego é uma criança, como é o caso de Khorshid, tudo pode ficar mais poético.

Quando pega o ônibus para ir trabalhar, o protagonista tenta fugir do excesso de estímulos que os sons lhe oferecem, tampando os ouvidos, mas em vão... O medo dele é a atração que a música exerce em seu espírito: ele é capaz de descer antes da parada que deveria ficar para seguir uma pessoa tocando um instrumento ou um rádio transmitindo uma música. Khorshid está cindido entre trabalhar para se alimentar e pagar o aluguel ou seguir a música que alimenta suas necessidades interiores mais profundas. Ao fim, devido a essa hesitação que o distrai e lhe prejudica no trabalho, acaba sendo despedido e despejado de casa. No entanto, numa cena que é um prodígio de técnica e de imaginação, Khorshid finalmente consegue reger a Quinta Sinfonia. A catarse está completa: venceu a música, venceu o Espírito. Venceu o cinema. Venceu a arte.

Mas fica a dúvida: para Mohsen há uma incompreensão mútua, indissolúvel, entre os humanos que são olhos e os que são ouvidos? Sim, mas nem tanto. A cena, em minha opinião, mais bela do filme mostra Khorshid se perdendo (mais uma vez a culpa é da música que ele ouviu e resolveu seguir) da amiga e companheira de trabalho Naderah. Desesperada, sem conseguir encontrá-lo, ela tem uma idéia: fecha os olhos e começa a caminhar se orientando pela audição; nesse ouvir de olhos cerrados ela começa a reconstruir o mundo para si de uma maneira que a aproxima de Khorshid. Acaba, assim, encontrando-o.


[1] Esse problema é muito bem refletido na obra O espetáculo interrompido, de Robert Stam, Rj, Paz e Terra, 1991.