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domingo, 31 de março de 2013

Esporte não é só saúde


Nesse aspecto, os animais estão mais bem protegidos. A Declaração Universal dos Direitos dos Animais, proclamada em 1978 pela Unesco, abomina toda forma de maus tratos de animais para divertimento dos homens. No Brasil, o governo Jânio Quadros proibiu as rinhas de galo e até hoje são caso de polícia. Os trabalhos sobre traumatismo crânio-encefálico tendo animais como modelos praticamente desapareceram. [...] Passa da hora da Declaração Universal dos Direitos Humanos fazer algo semelhante com essas estúpidas lutas, como o boxe e o UFC, versões de verdadeiras roletas russas. Não deveriam fazer parte do que consideramos esporte. Afinal, esporte é atividade relacionada à saúde e não à doença. Leia aqui.

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Os galos não vão para rinha por escolha própria, então é justo e necessário que os libertemos dela. Lutadores, pelo contrário, fazem do ringue o sentido da vida deles. Resumir esporte à obtenção de saúde não passa de uma correção política estúpida da prática esportiva, correção essa que data de 3 décadas no máximo. Só peladeiro de fim de semana e congêneres praticam esporte por saúde – e, mesmo aqui, o desejo de superar e superar-se, o acirramento controlado das rivalidades, a violência encenada e simbolicamente sublimada são componentes que não podem ser desconsiderados. Nenhum atleta de verdade nada, corre ou luta para obter mais saúde. É ridículo querer apagar a dimensão trágica da prática esportiva.

sexta-feira, 15 de março de 2013

O homem errado (The wrong man, 1956), de Alfred Hitchcock


Publicado originalmente na revista RUA [aqui]. 


Alfred Hitchcock é um desses cineastas que pensa por imagens, o que Deleuze – e não apenas este filósofo – considera a genuína vocação do cinema. Em Hitchcock, não há em geral frases solenes, teses sociais que o filme deva ilustrar. Bem arquitetada, a história flui, plena de pontos suspensivos que convidam o espectador a uma recepção ativa, suplementar. Muitas vezes, porém, seduzido pelo prazer milenar de seguir o desenrolar da trama, este espectador não repara a consciência crítica e irônica hitchcockiana, que vai construindo, com suas escolhas formais, uma metafísica da condição humana, cujo alicerce mais evidente vem do catolicismo, no seio do qual o cineasta foi formado.

O homem errado (The wrong man, 1956) comprova de modo claro essa vocação do cinema hitchcockiano de concentrar sua grandeza na elaboração formal, sondando a condição humana pela ótica católico-cristã. O argumento de O homem errado lembra, em seu núcleo essencial, o de O processo, de Franz Kafka: a imputação de culpa a um inocente, com sugestivas ressonâncias de um paralelismo com o pecado original. O andamento que Hitchcock dá ao tema, porém, o difere de Kafka, pelo relevo que o cineasta dá à fé do protagonista (brilhantemente interpretado por Henry Fonda) na economia da existência humana e na produção de um sentido para esta existência.  

Balestrero, o personagem de Fonda, é um músico que vive uma existência familiar pacata, ao lado da esposa, que ama, e de dois filhos. O primeiro diálogo dele com Rose (assim ela se chama), quando chega do clube em que toca todas as noites, introduz pela primeira vez no filme um elemento bastante recorrente no universo de Hitch: a culpa. Por mais amena que seja a conversa que levam, por mais afetivo e compreensivo que seja Balestrero em suas declarações à esposa, sentimos ali a raiz de um conflito, um halo de culpa que um não quer imputar ao outro, e de remorso. O dinheiro é o problema, a matriz do remorso e dos conflitos que fervilham sob o manto de felicidade que cobre aquela família. Neste ponto, Hitchcock prepara um pressuposto para o seu espectador levantar hipóteses sobre a honestidade de ambos, sobre os problemas do passado. Mas, que fique claro, conflitos e problemas “do passado”: no presente, e no que diz respeito à acusação sofrida por Balestrero, ele é inocente. O filme, na verdade, é a encenação do sacrifício de um bode expiatório. Balestrero é confundido com um assaltante, sofre as mais aviltantes humilhações de uma polícia que, imbuída de uma neutralidade perversa, mina-lhe a dignidade impondo-lhe uma verdadeira “Via crucis” pela cidade, a que ele é forçado a cumprir.

Entre outras leituras possíveis, O homem errado é um filme sobre a capacidade humana de suportar o sofrimento; não um sofrimento qualquer, mas o padecer da vítima inocente cujo espelho é o sofrimento do Cristo. Apesar disso, o filme de Hitchcock não é uma apologética de um carola. Hitch trabalha num registro sutil, seja na inserção de objetos simbólicos no quadro, seja fazendo a câmera assumir, em alguns momentos, a perspectiva do protagonista. Por exemplo, quando Balestrero é injustamente levado à prisão, a câmera focaliza insistentemente o chão, captando em closes os pés e as algemas, solidarizando-se com o estado de humilhação do protagonista; numa outra cena menos sutil, com Balestrero na cela, a câmera gira rapidamente, simulando a vertigem da personagem e sua indignação perplexa. Porém, uma das cenas mais significativas, e mais interessantes do filme, é a culminância do processo de enlouquecimento (ou um nome mais técnico que se dê) de Rose. Ofendida com o marido, vencida por obsessões persecutórias, ela apanha uma escova de cabelo e com ela acerta-lhe a testa e quebra o espelho. A cena é toda eivada de duplos e contrastes, a começar pela sugestiva iluminação expressionista; dois contrastes, porém, ganham maior relevo, em termos de produção de sentido: um deles é o espelho, projeção da duplicidade e da personalidade fendida de Rose e, até certo ponto, de Balestrero também: vale lembrar que ambos são dominados por um forte sentimento de culpa pela fraqueza do outro, ou pela ingerência financeira por que passam. A diferença é que, Balestrero, por ter fé, reage com estoicismo diante do sofrimento, pois sabe que há um princípio organizador do mundo, e que esse princípio está ao lado dos bons e dos justos; Rose, sem um apoio, sucumbe ao desespero. Este contraste entre ambos é reforçado pelo outro símbolo de grande relevo da cena: dois quadros postos na parede, próximos ao espelho que se quebrou. Um desses quadros representa a imagem de Jesus, o outro uma imagem “profana”, de uma bela mulher. Obviamente, trata-se de projeções de Balestrato e Rose, dos modos sagrado e profano de se instalar no mundo, que, segundo Mircea Eliade, são as duas modalidades básicas da experiência humana no mundo.

Neste contraste entre sagrado e profano, o catolicismo de Hitchcock arma uma crítica ao modelo de sociedade individualista e centrada num padrão de vida imanente no qual a terapêutica triunfou. Rose é internada numa clínica porque lhe faltou a fé na qual Balestrero perseverou, e cujo ícone mais recorrente no filme é o terço que ele sempre traz consigo. É sintomático que o verdadeiro assaltante seja descoberto no momento em que Balestrero reza, como sugere a fusão das imagens do protagonista e do facínora, recurso em geral “brega”, mas que nesta cena abre um leque de possibilidades interpretativas.

É de se ressaltar que depois de inocentado, na delegacia, Balestrero não alimenta ódio ou desejo de vingança, seja com os ineptos investigadores, seja com as duas mulheres que enganadamente o “reconheceram” como o criminoso. Isto é, ele mostra-se um lídimo cristão, o que reforça que sua fé ao longo do conflito não foi apenas uma muleta. Ao final, numa clara concessão ao público, Hitchcock usa o recurso do letreiro e uma rápida e idílica imagem final para nos assegurar de que Rose se curou. Curou-se, mas, porque sem fé, teve de suportar anos de terapia.

Análises à parte mereceriam a econômica e sugestiva música de Bernard Herrmann e a sombria e expressiva fotografia de Robert Burks, decisivas para estabelecer o clima pesadeloso do filme e o dilaceramento interior das personagens. O homem errado foi o único filme de Hitchcock baseado em fatos reais; muita gente levou isso em conta em suas análises, ressaltando, entre outras coisas, que o diretor inglês chegou mesmo a filmar com pessoas que viveram o drama. Particularmente, não acho relevante este fato: Hitch é artifício, forma. Filme o que filmar.

sábado, 2 de março de 2013

Rango (EUA, 2011), de Gore Verbinski


Rango é um camaleão domesticado que, por um acidente, é jogado no meio de uma terra inóspita, onde animaizinhos zoomorfizados (fazendeiros, pequenos comerciantes, justiceiros, mistificadores e profetas) resistem à escassez de água. Perdido, Rango terá de atravessar uma pista perigosa que, simbolicamente, representa um rito de passagem, uma prática de purgação dos amofinamentos que a civilização lhe trouxe. Acostumado a um espaço limitado, à comida fácil e tendo veleidades de artista, Rango passará por uma crise de identidade cuja chave de crescimento é a assunção plena de seu destino. Trata-se de um filme que, tendo como pano de fundo a oposição entre natureza e cultura, associa esta, como em Rousseau, à mentira e à simulação. Rango usa, inicialmente, seus dotes de ator para enganar os outros, mas, ao final, sem abdicar inteiramente de seu dom, recusa as máscaras sociais para assumir, com um forte halo existencialista, a dureza que o destino lhe reserva.

O diretor dessa bela animação, Gore Verbinski, o mesmo da horrenda trilogia Piratas do Caribe, não me deixou menos que boquiaberto. Rango é operístico, e em tudo bem orquestrado: imagem, som, roteiro e encenação convergem harmoniosamente na criação de um mundo altamente estilizado, em que o menor objeto ou sussurro tem sua funcionalidade. A profundidade de campo, muito explorada, destaca a solidão do protagonista num mundo bruto e indiferente; a luz, de um claro violento, acentua a aridez das paisagens desérticas; os ângulos insólitos reforçam as anomalias do mundo interior do protagonista; os toques surrealistas coroam o simbolismo da história sem incomodar pela inverossimilhança. A atenção dos realizadores não dispensa o mais reles detalhe, de uma gota de água aos detalhes sugestivos de uma pupila. Um cinema, sim, suntuoso, mas construído com mão de mestre, cada quadro minimamente pesquisado.

Como se não bastasse, Rango se arrisca no campo minado do pastiche pós-moderno, acumulando referências e revisitando clichês com muita ironia – mas, mesmo assim, não é nem um Shrek, com as inversões óbvias do fabulário tradicional, nem um desses filmes-de-cinéfilo pseudocult. O pastiche se estende à música de Hans Zimmer, linda homenagem às trilhas Ennio Morricone feitas para os spaghetti westerns altamente estilizados de Sérgio Leone, principal fonte de inspiração de Verbinski.

Depois de assistir a Rango, e ver a mitologia do cowboy tão bem retomada, e ver o pedagogismo e o moralismo pusilânime das animações-para-toda-família ser cuspida longe em prol de uma ética da virilidade (mas não machista), e ver uma saraivada de homenagens e alusões cinéfilas que, no entanto, antes ajudam que prejudicam a fluência da narrativa, a vontade que tive foi de revisitar os grandes westerns. Em Rango, a estilização e a eficácia simbólica da encenação que elevou o nome de Sergio Leone entre os grandes diretores do cinema são assustadoramente reencarnadas por Verbinski. Até o Homem Sem Nome,  célebre personagem de Clint Eastwood na Trilogia dos dólares, aparece (não vou estragar a surpresa dizendo como, mas me deliciei com o fundo mítico e a ironia da cena) destilando sua mística do dever e do destino, com seu usual rigor estóico, para o camaleãozinho perdido. Rango tem cheiro de Oscar.

[Texto escrito em junho de 2011]

sexta-feira, 1 de março de 2013