O texto
que segue foi uma conferência dada por Jorge Luis Borges, sobre a criação
poética, no prestigiado Collège de France, em 1983. O impulso de traduzi-la me
veio pelo único fato de que se trata de um texto esclarecedor e (até onde eu saiba) inédito em
português, no entanto alerto: traduzi-o de uma tradução. Explico: Borges o
proferiu em francês, Juan Moreno Blanco o traduziu para a revista colombiana Número e eu o traduzi da versão de
Moreno Blanco. Infidelidades estilísticas (fora as já esperadas de uma tradução
de primeira mão) devem existir, mas asseguro ao leitor, na condição de "borgianista", que não me soam gritantes; fosse uma peça ficcional, não
teria tido esta ousadia. É preciso lembrar ao leitor que o estilo do Borges
maduro é cristalino, o que ajuda bastante. Aqui, algumas repetições
deselegantes devem ser creditadas à forma de exposição oral, e ao fato de que
falava um senhor com quase 84 anos de idade. Os pontos suspensivos entre parênteses
indicam os momentos incompreensíveis da exposição, às vezes devido à baixa
qualidade da gravação, às vezes por titubeio do palestrante. Para os
interessados em aprofundar a visão de Borges sobre o assunto, sugiro o belo
livrinho Esse Ofício do Verso e o
texto “A poesia’, do livro Sete Noites
(também no volume III das Obras Completas).
[Wanderson
Lima]
*
Autoridades,
Senhoras e Senhores:
Pedem-me
que fale sobre a criação poética. (...)
A criação poética (…) parte da memória e a memória é feita sobretudo
de esquecimento; já que a memória, como disse Bergson, escolhe o que quer ou
deve esquecer. Eu escrevi um conto sobre um homem afligido por uma memória
infinita, esse conto se chama “Funes o memorioso.”. Felizmente nossa memória
não é infinita, um pode esquecer, outro pode inventar. E há ainda outro fato:
cada língua é uma tradição, uma tradição literária e poética. Eu não estou
seguro de que a palavra “lune”, por exemplo, em latim, em espanhol, em
italiano, em português ou em romeno seja a mesma palavra que a palavra “lune” em francês. A palavra
“lune” é mais delicada (...), como essa palavra inglesa, bastante demorada,
“moon”.
Todas
essas palavras não significam o mesmo, todas essas palavras correspondem a uma
literatura anterior, que dizer, se digo “lune” tenho que pensar que essa palavra
passou por Verlaine, que a palavra “moon” passou por Shakespeare e que a palavra
“luna” passou por Virgílio; assim, cada língua é uma tradição.
Com
relação à criação poética, li alguns livros de estética, conheço, por exemplo,
meu Aristóteles, meu Benedetto Croce, mas prefiro ler as reflexões dos
escritores. Sei que há duas teorias extremas da poesia. A primeira, que seria a
segunda no tempo, seria a daquele grande poeta romântico, Edgar Allan Poe, o
qual todos devemos alguma coisa, como a Walt Whitman. A teoria de Poe, que ele
expressou em sua “Filosofia da Composição”, é que a poesia, a criação poética,
é um ato intelectual. Bem, eu estou seguro de que ele se equivoca. Poe tomou
seu próprio poema, um poema que foi bastante melhorado por seus tradutores, por
Baudelaire, por Mallarmé – “O Corvo” –, um poema bastante medíocre em inglês, e
explicou como chegou a esse resultado. Segundo ele, começou pela idéia do
refrão; a importância, a força estética do refrão. Então pensou: os dois sons
mais agradáveis da língua inglesa são “eer” e “oor”, então chegou,
imediatamente, segundo ele, à palavra “nevermore” e depois pensou: é muito
estranho que um ser dotado de razão repita continuamente a mesma palavra; assim
pensou em um animal, pensou num papagaio, mas enfim... a dignidade poética lhe
fazia falta. Ele lia nesse tempo “Barnaby Rudge” de Dickens e aí encontrou um
corvo, então o corvo lhe sugeriu o busto de Palas, o busto lhe sugeriu uma
biblioteca e seguiu assim, por um sólido raciocínio, até a escritura de seu
poema, bastante medíocre, “O Corvo”. Segundo afirma, começou pelo último verso,
“Shall be lifted nevermore!”, e depois escreveu o resto para chegar a esse fim,
um pouco melancólico, diria eu. Bem... esta teoria da composição poética como
um ato intelectual, como uma série de raciocínios e de silogismos é, me parece,
de todo insatisfatória. É estranho que
essa idéia clássica seja obra de um grande escritor romântico, como o era sem
dúvida Edgar Allan Poe, sobretudo sendo que ele não escrevia versos mas sim
maravilhosas fábulas em prosa, por exemplo, “O Relato de Arthur Gordon Pym”.
Temos
outra idéia. É a antiga idéia da inspiração. Essa palavra é demasiado grandiosa
para mim, mas por que não aceitá-la no transcorrer desta conversa informal? ...
E bem, a idéia da inspiração é a idéia do poeta como amanuense, digamos: como
alguém que recebe o ditado por uma força desconhecida. Assim, os gregos
pensavam nas musas, os hebreus pensavam nos reis, no espírito... Essa idéia é mais plausível. Pode-se pensar
também no que o grande poeta irlandês William Butler Yeates chamava “great
memory”, a idéia de que em cada um de nós jaz a memória de nossos ancestrais.
Somos infinitos. Assim, o poeta não pode ser reduzido à sua realidade pessoal
e, quando escreve, recebe essa grande memória. Poder-se-ia pensar também nos
arquétipos platônicos, o que seria o mesmo; quer dizer, um contém o todo e o
expressa.
Bem, isso
pode aceitar-se ou não. Uma coisa é mais verossímil que a outra. Quisera eu
falar de minha vasta experiência, minha modesta experiência. Eu passei... eu
consagrei toda a minha vida à literatura. Sempre soube, desde que era uma
criança, que meu destino seria literário, quer dizer: eu me via sempre cercado
de livros como na biblioteca de meu pai, quem talvez me deu essa idéia. E bem,
sabia que passaria toda a minha vida lendo, sonhando e escrevendo, e talvez
publicando, mas isso não é importante, não faz parte de um destino literário,
mas enfim... eu fiz isso. Fiz o possível, não para ler todos os livros, como
dizia Mallarmé, mas, enfim, para ler os livros de que eu gostava.
Tive consciência
de que a leitura deve ser considerada não como uma carga, mas como uma fonte de
felicidade, possível e fácil. Então vou contar-lhes, já que estamos falando de
uma maneira amigável, espero, minhas experiências pessoais. E bem... eu caminho
pelas ruas de Buenos Aires, para Biblioteca Nacional, que dirigi há tempos e
que deixei depois, e, subitamente, sinto que algo vem a mim. Então espero. Esse
algo chega. É talvez uma fábula, uma noção qualquer, que não concebo de forma
clara, mas vislumbro sempre o começo e o fim e depois me leva a inventar o que
há entre essas duas coisas. Faço o que posso. Depois sinto que essa idéia
exige, digamos, um conto, um poema, um ensaio. Isso me é revelado depois...
As
teorias podem ser úteis para estimular a poesia. Por exemplo, eu não creio na
democracia, trata-se de uma questão estatística para mim. Mas essa idéia fez de
Whitman um grande poeta. A idéia da democracia, essa estranha idéia de escrever
um livro com um personagem... um triplo personagem, uma sorte de trindade. Pois
o Walt Whitman de “Folhas da Relva” é o jornalista Walt Whitman que o escreve;
uma imagem bastante elevada de sua própria vida e esta idéia é genial... Quer
dizer que cada leitor é um pouco Walt Whitman, Walt Whitman se dirige a ele;
quando alguém lê o livro pensa havê-lo escrito de uma certa maneira. E há um
fato que quero assinalar, bastante estranho, e é que todo mundo imitou os
frutos de Walt Whitman. Todo mundo; por exemplo, Lee Masters, por exemplo,
Neruda, por exemplo, Carl Sandburg – talvez seu melhor discípulo americano –,
enfim.... todo mundo imitou aquilo a que ele chegou, mas ninguém repetiu essa
estranha experiência de um herói que foi três pessoas: o escritor; uma imagem
glorificada do escritor e o leitor. E
bem, essa é uma maneira de trabalhar.
Porém, às
vezes, meu ponto de partida foi um texto qualquer, já que, entre as
experiências humanas, quiçá uma das mais belas, uma que assegura a felicidade
de certa maneira, é, como o sabemos todos, a leitura. Ou, como dizia Emerson,
outro grande poeta: a poesia nasce da poesia; ou, o que eu disse anteriormente:
a poesia nasce da língua, pois cada língua é uma forma de sentir o mundo, cada
língua é uma literatura possível, inclusive se não chega a sê-la. E bem, essa é
para mim outra maneira da criação poética.
Mas há
outra maneira que eu empreguei para meus modestos fins; essa é uma reflexão
qualquer. Por exemplo, a palavra “inesquecível”, que eu pensei em inglês,
“un-for-get-table”. Bem... comecei com essa palavra. Disse-me: todos os dias
empregamos a palavra “inesquecível”... mas se algo fosse continuamente
inesquecível, que se passaria? A pessoa não poderia pensar em outra coisa. Se
alguma coisa fosse continuamente inesquecível, então essa pessoa se tornaria
louca. Esse foi o ponto de partida para uma história que eu escrevi, pode ser
que vocês a tenham lido... chama-se “O Zahir”. Trata-se de uma moeda de vinte
centavos que é inesquecível. O homem que a vê se torna louco ao cabo de algumas
páginas. É um conto bastante curto. Em outra ocasião, parti também de uma
reflexão abstrata. Pensei nessa admirável invenção teológica da eternidade.
Disse-me: na noção de eternidade se pensa que há um momento, um momento divino
evidentemente – não pertence ao homem mas sim à divindade –, há um momento onde
se encontram todos os momentos do tempo, quer dizer, em um simples momento da
divindade se encontram todo o passado, todo o presente e todo o porvir. E bem,
pensei em uma categoria mais modesta que o tempo, o espaço. Alguém pode
imaginar, por que não imaginar, que em alguma parte há um ponto onde se
encontram todos os pontos do universo, então escrevi uma história que talvez
vocês tenham lido, “O Aleph”: eu não sei se é um bom conto ou não, já muita
gente o leu e o achou... legível, digamos.
Bem, meu
ponto de partida, nesses dois contos, foram essas duas idéias não muito interessantes,
não muito novas que eu saiba. E, além disso, há outra coisa: cada vez que
escrevi senti a emoção, a emoção de minha vida: eu creio que não se pode
escrever sem emoção, sem paixão. A idéia da poesia como jorro de palavras é uma
idéia de todo errônea, creio eu, uma idéia falsa. Além disso, quando alguém
viveu algo, quando sentiu algo, em um homem de letras isso pede uma forma (...)
Em “A
Odisséia” se lê que os deuses dão desgraças aos homens para que as gerações
seguintes tenham algo que cantar. Vinte e cinco séculos depois, Mallarmé pensou
o mesmo, mas ele pensou em termos de um livro, e disse: “Tout abouti à un
livre”. É a mesma idéia, a idéia de que nossas experiências existem para a
arte, existem para gerar outras formas de arte. Nesta arte achamos à primeira
vista que talvez o infortúnio seja mais nobre que a felicidade, a derrota mais
nobre que a vitória. A derrota pode fazermos pensar, enquanto que na vitória se
mesclam as interjeições, a vaidade: então o infortúnio é melhor. Certamente
todos temos nossa parte de felicidade e de infortúnio: mas a felicidade é um
fim em si mesmo e não exige nada enquanto que o infortúnio deve ser transformado
em outra coisa. Quer dizer, o infortúnio seria a matéria da arte, ou também a
nostalgia, a nostalgia está ligada a uma felicidade perdida, a um paraíso
perdido.
Há um
grande poeta na Espanha no presente, o grande poeta Jorge Guillén, que talvez
seja o único que canta a felicidade presente. Não a felicidade como o paraíso
perdido, mas como se ele estivesse no paraíso. Eu não conheço nenhum outro
poeta que tenha feito isso. Whitman faz o possível para cantar a felicidade,
mas a gente sente que ele era um homem triste, só, e que sua felicidade é um
dever que ele se impôs, que sua felicidade é uma faina, digamos.
Eu
comecei, como todos os escritores, sendo barroco. Isso é uma forma de timidez. Comecei sendo surpreendente e genial. No
presente sei que não o sou. Eu queria ser Quevedo ou sir Thomas Browne ou
Leopoldo Lugones e tantos outros… no presente eu me resigno a ser Borges. Que
outra coisa posso fazer? Parece que, como eu, a gente se resigna a isto e eu
posso ser Borges sem correr nenhum perigo.
Eu estou
muito surpreso de me encontrar aqui com vocês. É uma forma de felicidade à qual
eu nunca havia aspirado ou na qual eu nunca havia pensado. Alfonso Reyes me
disse uma vez: nós publicamos para não passarmos a vida corrigindo os
rascunhos. Isso é verdade. Quando publico um livro o esqueço, o esqueço
tranqüilamente. Quando me dizem, e é uma notícia surpreendente para mim, que há
bibliotecas inteiras escritas sobre mim... eu não li um único livro... eu
continuo pensando no futuro... penso que é doentio pensar no passado, pensar
naquilo que se escreveu. No presente, penso em meus livros futuros. Tenho 83
anos, então meu futuro não é verdadeiramente grande, contudo trato de olhar
para frente e não para trás, pois isso é doentio.
Quando eu
era jovem era barroco, buscava palavras bem antigas ou trava de forjar
palavras: no presente intento interferir o menos possível no que escrevo. Quer
dizer, escrevo... deixo a página de lado, a releio ao cabo de algum tempo,
suprimo todas as palavras ou frases que possam surpreender ao leitor. Trato de
que isso flua e inclusive sou obrigado às vezes a dar essa impressão ainda que
eu saiba que isso nunca fluiu, e me ponho a mudar e a corrigir, e a corrigir
minha correção, e assim continuamente... Mas eu quero que o leitor, quando leia
meus livros (…) os melhores são “O Livro de Areia”, “O Informe de Brodie”, “A
Cifra”. São meus melhores livros, se podem esquecer os outros comodamente; eu o
fiz. Eu penso que alguém que não leu nada pode começar por “A Cifra”, na poesia,
e por “O Livro de Areia”, na prosa.
No
presente intento ser o mais simples possível, sendo complexo mas de uma maneira
furtiva e modesta, de uma maneira não evidente. Quer dizer, eu não tenho
estética, não busco os temas, os temas me buscam, eu tento detê-los mas ao
final eles me encontram, então há que escrever para ficar-se tranqüilo (...)
Nesse momento eu publico ou não. Em geral o faço para ficar livre dos
rascunhos, como dizia Reyes. Mas creio que cada tema tem sua estética. Cada tema nos diz se ele quer que o escreva em
verso, em forma clássica, em verso livre, em prosa ... creio que a estética é
dada a cada tema. Há temas que exigem um romance, esses não me visitam, não
creio que escreva um romance, li poucos romances, escrevi demasiados contos, talvez,
e bastantes poemas também. E, repito-o, intento ser legível. Não penso no
leitor, salvo no sentido de que me esforço para que a leitura seja fácil e, se
possível, agradável.
Mas talvez tenha falado demais.
Talvez a ocasião, as palavras que disse, não são mais que um ponto de partida
para as perguntas. Estarei muito contente de responder a suas perguntas.
Prometo-lhes uma só coisa: a sinceridade, não posso prometer outra coisa além
disso... Enfim, amigos, obrigado.
Jorge Luis Borges/ Trad. Wanderson Lima