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quarta-feira, 17 de abril de 2013

Fora de Satã (Hors Satan, França, 2011), de Bruno Dumont


Bruno Dumont não é um cineasta fácil. Seu ponto de vista é sempre muito pessoal, ele nunca ilustra em seus filmes pensamentos das doutrinas correntes. Ex-professor de Filosofia, costuma dizer que é leitor contumaz da mística cristã, mas se diz convictamente ateu. Seus filmes, especialmente os últimos, abordam questões teológicas como o problema do mal e o embate entre a natureza e a graça. Diria que Dumont lida em seus filmes com personagens místicos de um modo distanciado porém jamais frio. Mas todo personagem de Dumont, por melhor que queira ser, é um danado. Parece que não agrada ao cineasta a idéia de pureza: o homem sempre lhe parece barroco.

Mas, quando disse que Dumont é um cineasta difícil, não queria tanto enfatizar seu pensamento. Queria falar – mas acabei me delongando noutra seara – do seu estilo. Planos lentos e enquadramentos rigorosamente calculados. Desdramatização absoluta, ao ponto de os personagens parecem mais zumbis declamando com sacrifício o texto. A paisagem é sempre rural e modorrenta, e a dialética homem versus natureza é muito dinâmica: aqui a natureza pode ser aliada, mas logo ali é a madrasta. De qualquer forma, ela participa ativamente do drama. Música de fundo não há; só os sons da natureza. E, não raras vezes, um silêncio absoluto. Os personagens falam pouco e só bagatelas; na verdade, ninguém se comunica com ninguém. Apesar de debater assuntos elevados em seus filmes, nenhum personagem de Dumont é capaz de emitir uma fala solene. Mesmos os corpos não conseguem “falar”: em todos os seus filmes, inclusive neste Fora de Satã, o sexo serve apenas para rebaixar o homem à condição animal: são sempre dois bichos agarrados um ao outro, não há alma, menos ainda lirismo. A nudez é constante nos filmes de Dumont, mas ela não nos excita.

Temo ter construído uma imagem pesada do cineasta, que afugente alguns cinéfilos, mas não posso mentir.  E, para completar a bagaceira, aviso que todos os processos de Dumont são radicalizados neste estranhíssimo Fora de Satã. Como eu poderia definir este filme? Concisamente, diria que é a tentativa de conciliar a austeridade e o rigor de inspiração bressoniana com o horror teológico (ou metafísico, seja lá como se chame) típico de filmes B. Quem assistiu ao Anticristo (2009) de Lars Von Trier imagine este filme infinitamente mais austero, sem os sustos fáceis, que chegará perto do que é Fora de Satã. Quero dizer: ambos são cineastas que substituem o repertório terapêutico moderno pela velha teologia e um de seus temas mais apaixonantes: a natureza humana e o mal.

Fora de Satã acaba, continua ressoando em nossa cabeça e não sabemos lidar – pelo menos eu não soube lidar – com a ambigüidade do personagem central. Um messias? Um assassino? Enfim, a apreciação desse filme nos cobra caro; o caráter cíclico da película e a falta de explicação dos acontecimentos, a certa altura, enchem a paciência. Começamos a pensar se por trás daquela lentidão e daquele silêncio há de fato uma verdade profunda, difícil de se plasmar em palavras e imagens, ou apenas o tédio de um mundo rigoroso mas vazio, construído pela mão de um misantropo. Sinceramente, vi o filme duas vezes e não sei responder.