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terça-feira, 25 de junho de 2013

Silogismos da amargura - Cioran


Conheci E. M. Cioran pelas mãos da amiga Marleide Lins, em fins dos nos 90. Não conhecia nada de gnosticismo, nem de mística, e muito menos sabia o sentido da expressão ontologia, mas, como já tinha lido Camus e Dostoievski, vi em Cioran algo como um existencialista de gueto, um niilista lúcido mas em vias de perder os sentidos. Através de Cioran cheguei a Teresa D'Ávila, que me levou a Juan de la Cruz, que por sua vez me atiçou a conhecer a literatura e a mística espanhola. Hoje, digo e repito: escolhi como pátria espiritual a Espanha. Ou seja, Cioran fertilizou minha vida intelectual; deu-me a Espanha de presente e, ateu místico, me ajudou a chegar a Deus. Recentemente, voltei a reler o filósofo romeno por sugestão de outro filósofo que muito admiro: Sloterdijk. Eis que então, na semana passada, Adriano Lobão Aragão, o melhor presenteador que eu conheço, me oferta a nova edição de "Silogismos da amargura", um dos cinco melhores livros do autor. Os outros quatro são: "Breviário de decomposição", "Exercícios de admiração" e dois não traduzidos no Brasil: "El aciago demiurgo" (Le mauvais démiurge) e "De lágrimas y de santos" (Lacrimi si Sfinti). Eis 3 aforismos desse livro lírico e impiedoso em último grau:

"Fracassar na vida é ter acesso à poesia - sem o suporte do talento"

"O pessimista deve inventar cada dia novas razões de existir: é uma vítima do 'sentido' da vida".

"Dom Quixote representa a juventude de uma civilização: ele se inventava acontecimentos; nós não sabemos como escapar aos que nos perseguem".

Sugiro fortemente a leitura de "Silogismos da amargura". Além de ser uma excelente porta de entrada no universo do pensador romeno - todos os seus temas prediletos estão lá -, a tradução de José Thomas Brum recria o estilo cioraniano com muita felicidade.

terça-feira, 18 de junho de 2013

Protestos pelo Brasil


O niilismo alegre e narcisista dessa geração encontrou seu sentido onde poderia encontrá-lo: na negação.  Por isso, não nos enganemos: todo cartaz, toda fantasia, tudo vai além do riso: guarda uma cilada que desemboca no desespero que REBENTA sem peias do semi-ilustre peito brasileiro. Já se disse mil vezes: não é contra PT apenas ou contra a Copa ou contra Feliciano. É contra. É o basta.  Não há falta de foco: a corrupção e o cinismo é que são mais difusos do que os amigos da boa ordem pensam. É todo o arcabouço que recobre nosso modelo democrático que começa a ruir, podre e esfarrapado. É hora de repensar o voto obrigatório e muitas outras coisas; talvez seja hora de ouvir sem pressa o que os velhos anarquistas têm a nos dizer. O que mais pode desvirtuar a força explosiva desse momento é a esquerda radical achar que o povo começa a levá-la a sério. Não ainda. Torço de coração que as manifestações de Teresina e de Floriano sejam CONTRA, e que PSTU & Cia não ajam como aproveitadores. A grande massa de brasileiros não se encontra representada por nenhum partido político. Como católico, funcionário público, pai de dois filhos, goleiro de pelada, leitor de poesia e tomador de café, eu repilo a violência revolucionária. Mas não sou burro nem otimista.

segunda-feira, 3 de junho de 2013

Formar leitores



Em depoimentos de escritores consagrados, sempre me surpreende um fato: quase todos adentraram no mundo da leitura tendo por guia um desses clássicos absolutos: o Quixote, As mil e uma noites, O primo Basílio, Moby Dick, e até Os sertões ou Os lusíadas. Quando o depoimento é de escritores antigos, quero dizer, que cresceram até a primeira metade do século XX, vá lá; mas quando se trata daqueles que nasceram na era da Cultura de Massa, cercados de jornais, histórias em quadrinhos e etc, tenho minhas dúvidas da veracidade do depoimento. Eu, que sou mortal e me encontro na faixa mediana da inteligência humana, comecei mesmo a ler através das histórias em quadrinhos da Luluzinha, do Pato Donald e principalmente da Turma da Mônica. O primeiro livro que li, até onde me lembro, foi Jogando com o Pelé. Na minha cabeça, o autor do livro era o próprio Pelé, mas, pesquisando agora a pouco, descobri que foi escrito “em colaboração” com Júlio Mazzei. A leitura de Jogando com o Pelé não foi nenhum encontro mágico, nenhuma experiência extática que mudou minha vida para sempre, como reza a mitologia criada por muitos escritores, quando descrevem o primeiro livro lido. Lembro muito de dois capítulos de Jogando com o Pelé: um sobre o cabeceio e outro sobre como o goleiro deve se posicionar na área. Nas peladas com amigos, sempre me dei bem nas cobranças de penalidades, defendendo muitas delas, e agradeço às dicas do Pelé. Ou seja, o primeiro livro de que me lembro ter lido – minha mãe recorda vagamente de me ver com outros livros em datas anteriores – não me ofereceu nenhuma experiência mágica, transcendental, mas teve um valor prático que, de certa forma, carrego até hoje. Acho que foi pela literatura de cordel, mais especificamente pelo cordel A chegada de Lampião no Inferno, que realmente senti aquele encanto pela música verbal de que fala Jorge Luis Borges, aquele encanto que nos mostra uma outra face da linguagem.

Como me tornei professor, a questão da leitura sempre rondou minha vida. Sempre procurei transmitir a meus alunos, independente da série ou da idade, esse amor à leitura que me veio inicialmente dessas leituras “pobres” e não dos clássicos, mas que, pouco a pouco, me levou aos clássicos. Mas não vou contar aqui sobre meu encontro com os clássicos. Vou contar como o problema da leitura, em minha vida, ganhou um novo contexto. Este contexto nasceu de uma nova condição existencial: a de pai. Quem é professor e gosta de ler, pensa que será fácil tornar o filho um leitor. É claro que a condição de professor-leitor ajuda, mas nem por isso torna as coisas fáceis. Como a maioria dos garotos urbanóides de classe média, meu filho (que fez nove anos a poucos dias) gosta de games, jogos interativos online, artes marciais, cinema e televisão. A leitura nunca lhe foi antipática, mas também nunca esteve no centro dos seus interesses. Se a professora lhe passa um livro, ele lê sem reclamar, mas também sem se empolgar.

Pois bem, levei-o este ano no Salipi. No primeiro dia, ele comprou um manual de truques mágicos. Leu um pedacinho do livro, aprendeu dois ou três truques bobinhos e esqueceu, por enquanto, o livro (como, aliás, ele costuma fazer com livros que comprou em livrarias: lê uma vez, às vezes apressado, e depois esquece).  No segundo dia, ele se deparou com um livro que chamou atenção pela capa; sentou-se, baixou a vista, leu um pouquinho bastante concentrado. Pediu-me, em seguida, que o comprasse. Não me senti animado: além de caro para o meu salário de professor, o livro era o terceiro de uma saga em que só a primeira parte é composta por 8 livros (completa, a saga tem 15 livros). Além disso, tinha algo próximo de 120 páginas e só dois mapas de ilustração, algo muito desafiador para alguém da idade dele e pouco habituado a leituras de maior extensão. Mesmo assim, acabei comprando. E funcionou. Ele já está lendo o terceiro livro (como leu primeiro a parte 3, retornou agora às partes 1 e 2).

Por que será, perguntei-me, que o livro chamou a atenção dele, enquanto outros indicados por mim e pela escola nunca lhe empolgaram dessa maneira? Um dos motivos é que tanto eu e minha esposa quanto a escola somos surdos aos apelos da idade. Esquecemos que iniciamos nossa leitura com textos geralmente “menores” e queremos impor aos pupilos nossos clássicos. Ora, um clássico não se impõe como clássico para quem não tem noção ainda do que é um clássico. Quem sabe o que é um clássico tem padrão de julgamento mais confiável; quem não sabe (e a maioria não sabe) tende a cultivar a leitura como uma arte erótica, reduzindo a literatura a objetivo de prazer. O salto da arte erótica – salto que não significa total superação, diga-se de passagem, pois sem prazer a leitura da obra literária perde parte de seu sentido – para uma dimensão mais reflexiva, para associação da literatura com os dilemas da condição humana, é paulatino. Gostaria de iniciar meu filho no mundo da literatura com o Dom Quixote, mas como ele não tem qualquer laivo de genialidade ou superdotação este desejo tornar-se-á um pesadelo se posto em prática. A escola, ou melhor, alguns professores tentam resolver este problema de uma forma que não encontro adjetivos melhores que lastimável e ridículo: adotam aquelas adaptações de obras clássicas. Dom Quixote em 70 páginas, Sonhos de uma noite de verão em 30, Odisséia em 20.

Eis um tema sobre o qual tenho de escrever um longo texto: as conseqüências dessas adaptações na formação do leitor; as reduções que elas promovem; a possibilidade de haver ganho nelas. Por hora, digo apenas que as chamadas de adaptações deveriam a rigor ser consideradas obras novas; uma adaptação de Dom Quixote é outra obra. O problema é que as editoras vendem a adaptação de Dom Quixote como se fosse o Dom Quixote. O otimismo ingênuo de muitos professores os leva a pensar que estão estimulando o cultivo dos clássicos. Mas o liame entre o clássico e sua adaptação simplificada é mais tênue do que geralmente se imagina e, além disso, nada, absolutamente nada garante que o aluno que leu hoje a adaptação de Moby Dick ou de O crime do padre Amaro irá no futuro procurar as obras originais. A pergunta que fica é: se há excelentes obras infanto-juvenis, por que não adotá-las em vez de ir à cata de clássicos empobrecidos por uma condensação extrema? Não bastasse isso, ainda é válido lembrar que diversos clássicos estrangeiros e vernáculos – como Oscar Wilde, Mark Twain, Graciliano Ramos, Clarice Lispector, Vinícius de Moraes, Cecília Meireles – escreveram histórias de alto nível para o público infanto-juvenil. Para que impor aos alunos uma adaptação empobrecedora de O retrato de Dorian Gray – que, diga-se de passagem, não considero nem longe comparável às peças cômicas do autor – se há os contos infanto-juvenis de Wilde à disposição? Em maio deste ano, adotaram como leitura obrigatória para meu filho uma adaptação de O príncipe e o mendigo. No princípio, pensei: vou ler com ele a tradução integral. Mas, comparando o primeiro capítulo da adaptação com o da tradução integral, vi que se fizesse isto meu filho responderia a prova toda errada. Percebi que o adaptador possivelmente entendia como fidelidade à obra original a manutenção de linhas gerais do enredo, o que dispensava como secundário passagens descritivas, mesmo aqueles de grande funcionalidade simbólica. Meu Deus, nesta linha interpretativa o que sobraria de Balzac, Alencar e Eça? Imagine a seguinte passagem, conhecidíssima, de O primo Basílio:


E Luísa tinha suspirado, tinha beijado o papel devotamente! Era a primeira vez que lhe escreviam aquelas sentimentalidades, e o seu orgulho dilatava-se ao calor amoroso que saía delas, como um corpo ressequido que se estira num banho tépido; sentia um acréscimo de estima por si mesma, e parecia-lhe que entrava enfim numa existência superiormente interessante, onde cada hora tinha o seu encanto diferente, cada passo conduzia a um êxtase, e a alma se cobria de um luxo radioso de sensações!

Ergueu-se de um salto, passou rapidamente um roupão, veio levantar os transparentes da janela... Que linda manhã! Era um daqueles dias do fim de agosto em que o estio faz uma pausa; há prematuramente, no calor e na luz, uma certa tranqüilidade outonal; o sol cai largo, resplandecente, mas pousa de leve; o ar não tem o embaciado canicular, e o azul muito alto reluz com uma nitidez lavada; respira-se mais livremente; e já se não vê na gente que passa o abatimento mole da calma enfraquecedora. Veio-lhe uma alegria: sentia-se ligeira, tinha dormido a noite de um sono são, contínuo, e todas as agitações, as impaciências dos dias passados pareciam ter-se dissipado naquele repouso. Foi-se ver ao espelho; achou a pele mais clara, mais fresca, e um enternecimento úmido no olhar.


Pela lógica que rege a maioria das adaptações, de uma a três frases seriam suficientes para resumir este trecho. Bastava algo banal como “Luísa recebeu a carta e ficou delirante de paixão, se sentido muito feliz e satisfeita consigo”. Ou seja, a adaptação mataria tudo o que no trecho eciano há de ironia e crítica, de consonância do autor com as crenças psicofisiológicas da época, de ampliação das possibilidades semânticas e estilísticas do uso do adjetivo em língua portuguesa.

Se O primo Basílio é levado ao cinema, se vira peça teatral ou seriado televisivo, muita gente desculpa as supostas infidelidades argumentando, com justiça, que cinema, teatro e televisão têm suas próprias regras, que neste caso adaptação fiel não implica reprodução ipsis litteris.  No entanto, se alguém reduz a narrativa de mesma obra, que na minha edição (São Paulo, Ática, 1997) ultrapassa as 320 páginas, para 60 páginas muita gente ainda quer achar que se trata da mesma obra. E o que dizer, para citar um caso mais extremo, da Divina Comédia, que é traduzida, vertida em prosa e reduzida para 50 páginas. Em suma: a qualidade literária de uma adaptação (se é que alguma possui essa qualidade) deve ser aferida sem remissão à obra em que se baseou, já que são duas coisas diferentes.

Fiz uma digressão sobre as adaptações e agora retomo minha reflexão central. Por que a tal saga, intitulada Deltora Quest, e escrita pela australiana Emily Rodda, chamou tanto a atenção de meu filho, e o tem feito reconsiderar o valor da leitura? Li 3 capítulos do terceiro livro (A cidade dos ratos) e 2 capítulos do primeiro livro (As florestas do silêncio) e pude perceber algumas coisas. O primeiro livro exibe algumas sofisticações, como digressões e fragmento de livros dentro de livro, mas nem por isso perde a fluência narrativa. O terceiro me pareceu mais fluente, com diálogos mais redundantes ainda, vocábulos difíceis postos espertamente em contextos que permitem ao leitor adivinhar o sentido. Talvez essa diferença se explique pelo fato de eu só ter lidos trechos; talvez no terceiro volume a autora já estivesse mais segura e íntima do processo, com a narrativa mais sob controle. Há outros ingredientes gerais que atraem os leitores juvenis, sempre condicionados a um narrar fluente e até elegante, não obstante aqui a ali se apresente um clichê: a ambientação medieval; a narrativa desenvolvida em etapas ou fases, como num jogo de vídeo-game; e heróis infanto-juvenis para todo gosto, dos valentes aos astutos, cujo carisma desperta uma adesão quase imediata.

Não nutro a menor ilusão de que meu filho salte de Emily Rodda para os clássicos. Mais provável é que passe para Harry Potter e similares, ou simplesmente volte-se com exclusividade aos filmes de entretenimento e aos games. Mas seu eu comecei com Jogando com Pelé, não é impossível que Rodda ajude. Aliás, não serei cético: ajuda, e ajuda muito mais que as adaptações que ele lê na escola para fazer prova. Por enquanto acompanho a leitura dele meio de longe, falo de outras histórias similares e guardo aquele aforismo de Harold Bloom como um amuleto:

“Não devemos recear o fato de nosso conhecimento como leitores parecer por demais autocentrado, pois, se nos tornamos leitores autênticos, os resultados dos nossos esforços nos afirmarão como portadores de luz a outras pessoas” (In: Como e por que ler, 2001, p. 20-21).


Post-scriptum 2013: Escrevi o texto acima em 2011. Contínuo na luta para fazer do Ícaro um leitor. Contínuo progredindo, ainda que devagar. A paixão dele agora são os mangás e as graphic novels. Ele ficou na leitura só de 3 livros da saga escrita por Rodda e depois encheu o saco. Em seguida, ficou fissurado na série Diário de um banana, da qual leu 5 livros. Hoje ele anda lendo os mangás O chamado, Diário do futuro, Death Note e Naruto.