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sábado, 31 de agosto de 2013

Toy Story 3 e o estatuto da imagem nas animações


As animações constituem um setor do cinema onde os rastros da magia e do mito podem ser percebidos sem muita dificuldade. Daí, não é de surpreender que nos defendamos das animações, nós racionalistas desencantados, exorcizando suas ambiguidades seja por meio de um discurso destimificador que busca baratear o sentido das imagens, traduzindo-as a partir de categorias das hermenêuticas da suspeita (Ricoeur) – ideologia, inconsciente, estrutura etc –, seja alcunhando-a de infantil, como se isso significasse superficialidade, entretenimento não instrutivo, passatempo bobo.

Não devemos pensar que a imagem, da animação ou do cinema em geral, seja intraduzível, nem que sejam ilegítimas as explicações derivadas das hermenêuticas da suspeita. O que parece ilegítimo é o uso puro e simples da animação, para desmitificar ou ainda para moralizar. Há um ódio à arte, ou pelo menos uma insensibilidade patológica, naqueles que só sabem vê-la como ilustração de forças ou verdades exteriores a ela. Pensemos numa professora bem intencionada que usa um produto como Toy Story 3 (Lee Unkrich, EUA, 2010) para reforçar um discurso edificante sobre a amizade ou num crítico cultural que se vale da mesma obra para demonstrar a aliança entre a indústria cinematográfica, consumo e reificação. Quem há de negar que Toy Story 3 seja uma bela parábola sobre a amizade? Quem também há de negar que o filme abusa do merchandising, elevando, por exemplo, a chatinha da boneca Barbie – cuja filosofia de vida (um amálgama grotesco de consumismo, egolatrismo, “coleguismo”, hedonismo, ecologismo, feminismo, moralismo e fetichismo) é das mais estúpidas já imaginadas neste planeta – ao status de heroína altruísta e até simpática?

Penso, porém, que Toy Story 3 escapa com folga dessas simplificações. Como um de seus modelos ancestrais – “O soldadinho de chumbo”, de Hans Christian Andersen –, ele aceita, por seu caráter de parábola, ser simplificado, mas é tão cheio de sutilezas, tão eivado de imagens susgestivas, que logo se vê a incompletude e, em alguns casos, a farsa de tais simplificações. O mundo de Toy Story 3, assim como o do soldadinho de Andersen, é fantástico e crível; é aconchegante e misterioso; está bem longe e bem perto de nós. Além disso (sou tentado a dizer: acima disso), são mundos regidos por uma honestidade notória perante os eventos da vida. Por isso, apesar de serem mundos preferencialmente “para crianças”, neles a velhice, a morte, a solidão e o abandono não são mascarados por piadinhas. Há humor? Sim, mas não um humor que seja um virar de costas para a vida “real”, com seus problemas “reais”. Em Andersen, o lirismo de uma sensibilidade profundamente religiosa doa beleza a eventos como a morte, o frio e abandono sem que a verdade do evento seja esmaecida; na trilogia Toy Story quem filtra o lado “feio” da vida (morte, abandono) de seus temores e nos devolve a sensatez necessária para encarar as durezas da vida é o magnético cowboy Woody, desde sempre o brinquedo preferido de Andy.

Nos últimos dez anos de cinema estadunidense, Woody é um dos personagens mais maduros que apareceu; sua capacidade de auto-sacrifícios em nome de seus credos e de sua “família” lembra alguns heróis de Clint Eastwood (por exemplo, o Walt Kowalski de Gran Torino).

Eu gostaria aqui de tentar destecer um pouco a complexa rede de simbolismos e alusões que Toy Story 3 tece. Pensar um pouco mais sobre o contraste entre tradição e modernidade que o filme elabora a partir da contraposição entre cowboy Woody e herói espacial Buzz; pensar o caráter desmontável de Sr. e da Sra. Cabeça de Batata à luz das idéias a respeito das identidades fragmentadas da pós-modernidade; pensar com Foucault sobre a vinculação entre instituição e produção de regimes de verdade, a fim de entender melhor a domesticação dos corpos e a produção de subjetividades na creche de Sunnyside. Poderia também mostrar como o filme desmonta uma série de preconceitos e estereótipos com bastante humor e uma inteligência muito acima da média – por exemplo, pôr um ursinho rosa e cheirando a morango silvestre como vilão-mor; reverter a alienação religiosa dos 3 marcianinhos (“O Garra!...”) em fonte de salvação dos demais brinquedos, quase consumidos por um incinerador muito semelhante ao Inferno de certa vertente do imaginário cristão; satirizar de maneira politicamente incorreta o homossexualismo recalcado do egocêntrico Ken. Porém, mais importante do que tudo isso, para quem de fato gosta de cinema, é a convivência amorosa com as imagens que nos impactaram. Nisso há uma sabedoria que não se desvincula do afeto.



quinta-feira, 1 de agosto de 2013

O Rap polêmico de Kedé


O ódio destilado pelo rapper Kedé não é justo mas é justificável. É preciso muita cegueira social ou muito cinismo para, sem hesitações, tachar Kledeilson Barreto de marginal e coisas do tipo - como fizeram muitos veículos de comunicação - e não enxergar razão nenhuma na revolta social dele. Não sou dos mais adeptos à ladainha do vitimismo social, sei que o jogo de forças é muito mais complexo - mas, neste caso específico, Kledeilson não está reclamando à toa. Assim como meu amigo Thiago E Ah, torço por um diálogo construtivo entre as partes em querela. Mas, cá pra nós, acho que uma das partes interessadas, o RONE, vai querer desforra. E desforra sem alarde público nenhum. Não faço com isso um julgamento moral do RONE, não tenho conhecimento de causa para tanto, mas me baseio no que vi sem que ninguém precisasse me contar. Vi, me choquei e não trarei a público porque não filmei nem fotografei. Por mais justos que sejam os policiais do RONE, eles estão de orgulho ferido e terão dificuldade de lidar com o que consideram uma 'ameaça pública'. E o pior é que a mídia alimenta a rixa: quer estender o equívoco espetáculo, mesmo que isso não seja o melhor para a sociedade em geral.