Os
personagens de Abel Ferrara encontram-se na encruzilhada entre o vício e “o
salto para a fé” (Kierkegaard). Não há espaço, no mundo de Ferrara, para outro
tipo de gente senão o libertino e o convertido (ou o libertino a caminho da
conversão). Trata-se, portanto, de um mundo movido pelo excesso, um mundo
situado à beira de um apocalipse, onde a medida do bom senso não tem vez. Se os
personagens vivem a danação, o estilo lhes faz jus: Ferrara é rigoroso, elabora
com cuidado a encenação, mas faz isto desprezando olimpicamente a tomada rara e
o efeito belo. Quando a beleza aparece, aparece submetida à idéia. Religioso,
mas também trágico, Ferrara não contempla, não poetiza. Em vez do plano-sequência
“espiritualizado” de Tarkovski, a câmera de Ferrara treme, tateia,
alucina.
Olhos de serpente (1994) está longe de
equiparar os melhores filmes de Ferrara (O
Rei de Nova York, Vício Frenético, Maria),
mas representa com muita dignidade a insistente imersão de Ferrara nas
entranhas do homem em danação, dos degradados carcomidos de culpa. Eddie
(Harvey Keitel) é um cineasta que está filmando uma história a la Bergman sobre um casal em crise.
Sua dupla de atores é formada por Francis (James Russo) e Sarah (Madonna,
provando ser atriz de primeiro time). No filme dirigido por Eddie, o conflito
básico é gerado pela incompatibilidade de gênios entre Sarah, recém convertida,
e Francis, que não só continua na “bagaceira” como também não suporta a nova
vida de Sarah. Estamos num palco que Ferrara conhece bem: o do destino humano
dividido entre danação e salvação num mundo regido pelo mal.
Como
no conto “Tlön, Uqbar, Orbis Tertius”, de Jorge Luis Borges, a ficção (encenada
no filme de Eddie) começa a envenenar a realidade, e o cotidiano dos
protagonistas do filme e também o do diretor começa a desabar. Francis é a
primeira vítima, ao se perder na intensidade do seu papel, mas nada é mais
dolorosamente degradante do que o progressivo esfacelamento da família de Eddie
(esfacelamento, aliás, que já se anuncia sutilmente na primeira cena do filme).
Ao recorrer a mise en abîme, mostrando o filme dentro do
filme, Abel Ferrara quer menos refletir sobre os processos de sua arte do que
nos falar de algo (em termos metafísicos) muito mais grave: o mal. Sobram
farpas também para Hollywood e sua indústria do estrelato. Muitos elementos de Olhos de serpente foram retomados e
aprimorados no espantoso Maria
(2005), sobre qual um dia terei de escrever.
Nenhum comentário:
Postar um comentário