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segunda-feira, 10 de setembro de 2012

Cinema como terapia?


BALIZAS

“O homem ambicioso ainda está entre nós, como sempre esteve, mas agora necessita de um tipo de iniciativa mais sutil, uma capacidade mais profunda de manipular a democracia das emoções, se é para conservar e expandir com sucesso sua identidade individual” (Philip Rieff).
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“O ‘triunfo da terapêutica’ [...] pode ser uma abdicação da autonomia, em que o declínio dos padrões tradicionais, associado à fé na técnica, leva as pessoas a deixar de confiar em seus próprios instintos a respeito de felicidade, realização e criação de filhos. Então as ‘profissões da ajuda’ tomam conta de sua vida, um processo descrito por Foucault, mas talvez não adequadamente explicado por ele” (Charles Taylor).
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“O triunfo da mentalidade terapêutica... que insistia em ver as questões imemoráveis da vida humana como problemas que demandam soluções. A cultura terapêutica forneceu ambos em abundância: os terapeutas transformaram os antiqüíssimos dilemas humanos em problemas psicológicos e afirmaram que eles (os terapeutas) eram os únicos que conheciam o tratamento” (Charles J. Sykes).


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UMA HIPÓTESE

Quanto mais terapêutico for um filme – quando mais ele servir para obstar o amadurecimento e a busca honesta pela verdade em prol de pílulas positivas de conforto – pior ele será. Pior especialmente no sentido ético, mas também no sentido estético, já que explorará todos os clichês da “representação clássica” (Bordwell) a fim de extrair dela seu principal e mais pernicioso dom: manipular às cegas os sentimentos do espectador.


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ALGUMAS ILAÇÕES

“Pode assistir a este filme, eu estava meio pra baixo e ele me ajudou bastante”, ela me disse. Saquei na hora que jamais devo assistir àquele filme.
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Do ponto de vista moral, À procura da felicidade, protagonizado pelo estrelão Will Smith, é o filme mais pernicioso da história do cinema. Do mesmo ponto de vista, Um instante de inocência, de Mohsen Makhmalbaf é um dos melhores, talvez O melhor.
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A ânsia terapêutica estraga rigorosamente todos os filmes de Spielberg, mesmo os mais bem realizados.
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Quando um pedagogo ou um psicólogo lhe disser que na próxima aula trará um filme, é bom que você falte à aula. O risco de o filme ser meramente terapêutico é grande; e mesmo se for um bom filme, o comentário provavelmente o estragará.
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Fulano tem um problema. Indicaram-lhe um filme que supostamente iria ajudá-lo. Ele acatou a sugestão, que não lhe serviu em nada, e ainda o fez descobrir que boa parte dos filmes são feitos exatamente para tripudiar dos sentimentos alheios, banalizando-os com malícia.
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Todo filme “terapêutico” é pernicioso e mal realizado? Penso que não. Frank Capra cativa pela ingenuidade e Majid Majidi porque troca os adultos pelas crianças e a terapia moderna pela fé. A felicidade não se compra, de Capra, e Filhos do paraíso, de Majidi, provam que existem filmes terapêuticos honestos, ainda que raros.
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Uma coisa são os filmes terapêuticos (Meu adorável professor, Patch Adams, À procura da felicidade etc), outra a “terapeutização” dos filmes. Em mãos incautas, até Glauber Rocha pode virar objeto terapêutico.
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O consumidor de filmes terapêuticos e produtos similares – livros de auto-ajuda, palestras motivacionais, ficção de misticismo barato – adia uma tomada de consciência de sua real situação consumindo cada vez mais estas ninharias.
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Muito mais que as religiões, o consumo de filmes terapêuticos e produtos similares fomentam uma cultura da culpa. Eles ensinam que a felicidade é uma questão de mera opção, sem nenhuma relação como fatores de ordem social, por exemplo. Então, se você é infeliz, dizem eles, a culpa é exclusivamente sua.
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Quem assiste a um filme para aprender – abstraindo questões de ordem estética etc em prol de se deleitar com “grandes lições” – acaba não aprendendo nada. Isto vale para as outras artes também.
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O tipo de filme terapêutico que, neste momento, triunfa no Brasil são os “filmes espíritas”. Neles, o foco é mais propriamente na fraternidade e na caridade do que naquilo que o corpo doutrinário kardecista tem de inovador. Por isso, quase não há polêmica religiosa em torno desses filmes. Não acho impossível, porém, que se erga em nosso país uma indústria de “filmes evangélicos”, de vertente neopentecostal, com sua usual agressividade doutrinária. Isto abalaria, em alguma medida, nosso quadro cultural. Me espanta o fato de os evangélicos, que já comandam um naco significativo da indústria fonográfica e das redes televisivas, não terem metido ainda a cara na empreitada cinematográfica, pois o cinema é talvez a expressão artística de maior poder de persuasão.

2 comentários:

André Renato disse...

Reflexão afiadíssima, meu caro!

Wanderson Lima disse...

Obrigado, e bem-vindo à nova casa!