BALIZAS
“O homem ambicioso ainda está entre nós, como
sempre esteve, mas agora necessita de um tipo de iniciativa mais sutil, uma
capacidade mais profunda de manipular a democracia das emoções, se é para
conservar e expandir com sucesso sua identidade individual” (Philip Rieff).
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“O ‘triunfo da terapêutica’ [...] pode ser
uma abdicação da autonomia, em que o declínio dos padrões tradicionais,
associado à fé na técnica, leva as pessoas a deixar de confiar em seus próprios
instintos a respeito de felicidade, realização e criação de filhos. Então as
‘profissões da ajuda’ tomam conta de sua vida, um processo descrito por
Foucault, mas talvez não adequadamente explicado por ele” (Charles Taylor).
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“O triunfo da mentalidade terapêutica... que
insistia em ver as questões imemoráveis da vida humana como problemas que
demandam soluções. A cultura terapêutica forneceu ambos em abundância: os
terapeutas transformaram os antiqüíssimos dilemas humanos em problemas
psicológicos e afirmaram que eles (os terapeutas) eram os únicos que conheciam
o tratamento” (Charles J. Sykes).
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UMA
HIPÓTESE
Quanto mais terapêutico for um filme – quando
mais ele servir para obstar o amadurecimento e a busca honesta pela verdade em
prol de pílulas positivas de conforto – pior ele será. Pior especialmente no
sentido ético, mas também no sentido estético, já que explorará todos os
clichês da “representação clássica” (Bordwell) a fim de extrair dela seu
principal e mais pernicioso dom: manipular às cegas os sentimentos do
espectador.
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ALGUMAS
ILAÇÕES
“Pode
assistir a este filme, eu estava meio pra baixo e ele me ajudou bastante”, ela
me disse. Saquei na hora que jamais devo assistir àquele filme.
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Do ponto de vista moral, À procura da felicidade, protagonizado pelo estrelão Will Smith, é
o filme mais pernicioso da história do cinema. Do mesmo ponto de vista, Um instante de inocência, de Mohsen
Makhmalbaf é um dos melhores, talvez O melhor.
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A ânsia terapêutica estraga rigorosamente
todos os filmes de Spielberg, mesmo os mais bem realizados.
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Quando um pedagogo ou um psicólogo lhe disser
que na próxima aula trará um filme, é bom que você falte à aula. O risco de o
filme ser meramente terapêutico é grande; e mesmo se for um bom filme, o
comentário provavelmente o estragará.
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Fulano tem um problema. Indicaram-lhe um
filme que supostamente iria ajudá-lo. Ele acatou a sugestão, que não lhe serviu
em nada, e ainda o fez descobrir que boa parte dos filmes são feitos exatamente
para tripudiar dos sentimentos alheios, banalizando-os com malícia.
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Todo filme “terapêutico” é pernicioso e mal
realizado? Penso que não. Frank Capra cativa pela ingenuidade e Majid Majidi
porque troca os adultos pelas crianças e a terapia moderna pela fé. A felicidade não se compra, de Capra, e Filhos do paraíso, de Majidi, provam que
existem filmes terapêuticos honestos, ainda que raros.
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Uma coisa são os filmes terapêuticos (Meu adorável professor, Patch Adams, À procura da felicidade etc), outra a “terapeutização” dos filmes.
Em mãos incautas, até Glauber Rocha pode virar objeto terapêutico.
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O consumidor de filmes terapêuticos e
produtos similares – livros de auto-ajuda, palestras motivacionais, ficção de
misticismo barato – adia uma tomada de consciência de sua real situação
consumindo cada vez mais estas ninharias.
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Muito mais que as religiões, o consumo de
filmes terapêuticos e produtos similares fomentam uma cultura da culpa. Eles
ensinam que a felicidade é uma questão de mera opção, sem nenhuma relação como
fatores de ordem social, por exemplo. Então, se você é infeliz, dizem eles, a
culpa é exclusivamente sua.
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Quem assiste a um filme para aprender –
abstraindo questões de ordem estética etc em prol de se deleitar com “grandes
lições” – acaba não aprendendo nada. Isto vale para as outras artes também.
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O tipo de filme terapêutico que, neste
momento, triunfa no Brasil são os “filmes espíritas”. Neles, o foco é mais propriamente
na fraternidade e na caridade do que naquilo que o corpo doutrinário kardecista
tem de inovador. Por isso, quase não há polêmica religiosa em torno desses
filmes. Não acho impossível, porém, que se erga em nosso país uma indústria de
“filmes evangélicos”, de vertente neopentecostal, com sua usual agressividade
doutrinária. Isto abalaria, em alguma medida, nosso quadro cultural. Me espanta
o fato de os evangélicos, que já comandam um naco significativo da indústria
fonográfica e das redes televisivas, não terem metido ainda a cara na empreitada
cinematográfica, pois o cinema é talvez a expressão artística de maior poder de
persuasão.
2 comentários:
Reflexão afiadíssima, meu caro!
Obrigado, e bem-vindo à nova casa!
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