O senegalês Ousmane Sembene, falecido em 2007, já foi comparado algumas
vezes com Glauber Rocha. De fato, ambos propõem a produção de uma arte política
mediada por requintes experimentais e conflitos ideológicos dilacerantes,
esquivando-se da miséria (em todos os sentidos, especialmente o estético) que é
a arte didática. Mas enquanto Rocha é épico desde o ponto de partida, logrando
uma representação cósmica dos conflitos humanos que abarca do político ao
metafísico, Sembene, neste Moolaadé (2004), vale-se de outra
estratégia: começa com os pés no chão, como quem fosse apenas contar a
narrativa de uma mulher birrenta e, aos poucos, vai fazendo sua história
crescer até adquirir dimensões épicas. Tecnicamente falando, a maneira como
Sembene conduz este crescimento é quase irrepreensível. Impressiona como ele
encontra símbolos e duplos na paisagem africana sem, aparentemente, precisar
forçar a barra.
A história de Moolaadé situa-se num vilarejo africano
afastado de qualquer cidade grande, num lugar onde prevalece o costume da
“purificação” feminina, isto é, a tradição da excisão clitoriana como rito de
passagem. Collé, a birrenta, é a única mulher deste vilarejo que não permitiu
que sua filha fosse mutilada. Para tanto, invocou os poderes da “moolaadé”,
algo como uma deprecação mágica que só pode ser quebrada por quem a invocou.
Isto tem um alto preço: sua filha vira uma “bilakoro” (mulher impura) e
pode por isso perder um casamento promissor; seu marido também fica
desmoralizado perante a comunidade, e recebe por isso pressões quase insuportáveis
do irmão mais velho. O conflito irá aumentar quando quatro meninas lhe pedem
também a proteção de uma “moolaadé” com o fim de fugir à excisão e
Collé, em atitude desafiadora, aceita o papel de protetora. Pronto, está armado
o conflito que desembocará numa litigiosa reconsideração de valores culturais.
O conflito se intensificará quando duas mentes masculinas esclarecidas,
alimentadas pelo manjar iluminista da cultura francesa, entrarem no conflito: o
filho do líder da vila e o ambíguo comerciante (misto de usurário, conquistador
barato e humanista) apelidado de “Mercenário”. Eles são, por assim dizer, a
consciência superior daquele cosmo, já que adquiriram a capacidade de olhar
aqueles valores culturais numa perspectiva distanciada. São, em certo sentido,
alter-egos do diretor. O que diminui, a meu ver, a força da “epopéia” de
Sembene é sua inclinação, ainda que ambígua, ao discurso dos “iluministas”.
Fica a impressão, demasiado forte, de um cinema de tese. E pior: como se trata
de uma tese iluminada pelo ideário iluminista, a fé religiosa e as forças
míticas tendem a se transfigurar em trevas, atraso, ignorância.
Claro, Sembene não se rende inteiramente ao credo iluminista, tanto que
foi a “moolaadé”, isto é, uma força mítico-religiosa que desencadeou uma
suposta consciência revolucionária. Mas a invocação parece ser – e espero que
neste ponto eu esteja enganado, e tenha visto o filme de forma apressada –
apenas uma tímida fagulha que vai ajudar as mulheres e alguns poucos homens
(três, na verdade) a acenderem a luz da Razão. Ou seja: o senso épico do
seganalês está sempre correndo o risco de ser dissolvido pela suposição da
superioridade da ratio ilustrada, cujas premissas conduzem à
redução de uma prática religiosa incomum à norma européia a mero ato de
violência. Trocando em miúdos, ora o filme aponta para o épico, ora para o
libelo protofeminista eurocêntrico. A questão é mesmo muito delicada e
certamente existem antropólogos, religiosos e juristas infinitamente mais
competentes do que eu para julgar, cada um do seu ângulo de atuação, os dilemas
morais, políticos, jurídicos e culturais que envolvem a excisão ritual.
Obviamente, nas condições culturais em que vivemos, a excisão é uma
brutalidade, e só. Mas, e se eu tivesse me criado naquela pequena comunidade no
meio da África? Provavelmente, estaria imerso na “episteme” (Foucault) deles, e
assim veria a excisão com outros olhos. Ora, aqui é que reside o “X” da
questão: Sambene é um senegalês que viveu parte da vida na França, e
inegavelmente a formação de sua consciência carrega um dualismo dilacerante.
Sem banalizar a gravidade da questão, isto explica muito as oscilações do
diretor.
Na última cena do filme, a câmera deixa de enquadrar o ovo que repousava
num cume da Mesquita situada na vila para concentrar-se numa antena de TV. Ou
seja: as trevas da religião deram lugar às imagens do progresso devorador dos
costumes arcaicos. Poderia ser mais agressiva a anunciação do nome dos
vitoriosos? Glauber Rocha, o homem que realizou “O dragão da maldade contra o
santo guerreiro”, deve ter, nesta hora, se remexido no túmulo.
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