Em
depoimentos de escritores consagrados, sempre me surpreende um fato: quase
todos adentraram no mundo da leitura tendo por guia um desses clássicos
absolutos: o Quixote, As mil e uma noites, O primo Basílio, Moby Dick, e até Os sertões
ou Os lusíadas. Quando o depoimento é
de escritores antigos, quero dizer, que cresceram até a primeira metade do
século XX, vá lá; mas quando se trata daqueles que nasceram na era da Cultura
de Massa, cercados de jornais, histórias em quadrinhos e etc, tenho minhas
dúvidas da veracidade do depoimento. Eu, que sou mortal e me encontro na faixa
mediana da inteligência humana, comecei mesmo a ler através das histórias em
quadrinhos da Luluzinha, do Pato Donald e principalmente da Turma da Mônica. O primeiro livro que
li, até onde me lembro, foi Jogando com o
Pelé. Na minha cabeça, o autor do livro era o próprio Pelé, mas,
pesquisando agora a pouco, descobri que foi escrito “em colaboração” com Júlio
Mazzei. A leitura de Jogando com o Pelé
não foi nenhum encontro mágico, nenhuma experiência extática que mudou minha
vida para sempre, como reza a mitologia criada por muitos escritores, quando
descrevem o primeiro livro lido. Lembro muito de dois capítulos de Jogando com o Pelé: um sobre o cabeceio
e outro sobre como o goleiro deve se posicionar na área. Nas peladas com
amigos, sempre me dei bem nas cobranças de penalidades, defendendo muitas
delas, e agradeço às dicas do Pelé. Ou seja, o primeiro livro de que me lembro
ter lido – minha mãe recorda vagamente de me ver com outros livros em datas
anteriores – não me ofereceu nenhuma experiência mágica, transcendental, mas
teve um valor prático que, de certa forma, carrego até hoje. Acho que foi pela
literatura de cordel, mais especificamente pelo cordel A chegada de Lampião no Inferno, que realmente senti aquele encanto
pela música verbal de que fala Jorge Luis Borges, aquele encanto que nos mostra
uma outra face da linguagem.
Como
me tornei professor, a questão da leitura sempre rondou minha vida. Sempre
procurei transmitir a meus alunos, independente da série ou da idade, esse amor
à leitura que me veio inicialmente dessas leituras “pobres” e não dos
clássicos, mas que, pouco a pouco, me levou aos clássicos. Mas não vou contar
aqui sobre meu encontro com os clássicos. Vou contar como o problema da
leitura, em minha vida, ganhou um novo contexto. Este contexto nasceu de uma
nova condição existencial: a de pai. Quem é professor e gosta de ler, pensa que
será fácil tornar o filho um leitor. É claro que a condição de professor-leitor
ajuda, mas nem por isso torna as coisas fáceis. Como a maioria dos garotos
urbanóides de classe média, meu filho (que fez nove anos a poucos dias) gosta
de games, jogos interativos online, artes marciais, cinema e televisão. A
leitura nunca lhe foi antipática, mas também nunca esteve no centro dos seus
interesses. Se a professora lhe passa um livro, ele lê sem reclamar, mas também
sem se empolgar.
Pois
bem, levei-o este ano no Salipi. No primeiro dia,
ele comprou um manual de truques mágicos. Leu um pedacinho do livro, aprendeu
dois ou três truques bobinhos e esqueceu, por enquanto, o livro (como, aliás,
ele costuma fazer com livros que comprou em livrarias: lê uma vez, às vezes apressado,
e depois esquece). No segundo dia, ele
se deparou com um livro que chamou atenção pela capa; sentou-se, baixou a
vista, leu um pouquinho bastante concentrado. Pediu-me, em seguida, que o
comprasse. Não me senti animado: além de caro para o meu salário de professor,
o livro era o terceiro de uma saga em que só a primeira parte é composta por 8
livros (completa, a saga tem 15 livros). Além disso, tinha algo próximo de 120
páginas e só dois mapas de ilustração, algo muito desafiador para alguém da
idade dele e pouco habituado a leituras de maior extensão. Mesmo assim, acabei
comprando. E funcionou. Ele já está lendo o terceiro livro (como leu primeiro a
parte 3, retornou agora às partes 1 e 2).
Por
que será, perguntei-me, que o livro chamou a atenção dele, enquanto outros
indicados por mim e pela escola nunca lhe empolgaram dessa maneira? Um dos
motivos é que tanto eu e minha esposa quanto a escola somos surdos aos apelos
da idade. Esquecemos que iniciamos nossa leitura com textos geralmente
“menores” e queremos impor aos pupilos nossos clássicos. Ora, um clássico não
se impõe como clássico para quem não tem noção ainda do que é um clássico. Quem
sabe o que é um clássico tem padrão de julgamento mais confiável; quem não sabe
(e a maioria não sabe) tende a cultivar a leitura como uma arte erótica,
reduzindo a literatura a objetivo de prazer. O salto da arte erótica – salto
que não significa total superação, diga-se de passagem, pois sem prazer a
leitura da obra literária perde parte de seu sentido – para uma dimensão mais
reflexiva, para associação da literatura com os dilemas da condição humana, é
paulatino. Gostaria de iniciar meu filho no mundo da literatura com o Dom Quixote, mas como ele não tem
qualquer laivo de genialidade ou superdotação este desejo tornar-se-á um
pesadelo se posto em prática. A escola, ou melhor, alguns professores tentam
resolver este problema de uma forma que não encontro adjetivos melhores que
lastimável e ridículo: adotam aquelas adaptações de obras clássicas. Dom Quixote em 70 páginas, Sonhos de uma noite de verão em 30, Odisséia em 20.
Eis
um tema sobre o qual tenho de escrever um longo texto: as conseqüências dessas
adaptações na formação do leitor; as reduções que elas promovem; a
possibilidade de haver ganho nelas. Por hora, digo apenas que as chamadas de
adaptações deveriam a rigor ser consideradas obras novas; uma adaptação de Dom Quixote é outra obra. O problema é
que as editoras vendem a adaptação de Dom
Quixote como se fosse o Dom Quixote.
O otimismo ingênuo de muitos professores os leva a pensar que estão estimulando
o cultivo dos clássicos. Mas o liame entre o clássico e sua adaptação
simplificada é mais tênue do que geralmente se imagina e, além disso, nada,
absolutamente nada garante que o aluno que leu hoje a adaptação de Moby Dick ou de O crime do padre Amaro irá no futuro procurar as obras originais. A
pergunta que fica é: se há excelentes obras infanto-juvenis, por que não
adotá-las em vez de ir à cata de clássicos empobrecidos por uma condensação extrema?
Não bastasse isso, ainda é válido lembrar que diversos clássicos estrangeiros e
vernáculos – como Oscar Wilde, Mark Twain, Graciliano Ramos, Clarice Lispector,
Vinícius de Moraes, Cecília Meireles – escreveram histórias de alto nível para
o público infanto-juvenil. Para que impor aos alunos uma adaptação
empobrecedora de O retrato de Dorian Gray
– que, diga-se de passagem, não considero nem longe comparável às peças cômicas
do autor – se há os contos infanto-juvenis de Wilde à disposição? Em maio deste
ano, adotaram como leitura obrigatória para meu filho uma adaptação de O príncipe e o mendigo. No princípio,
pensei: vou ler com ele a tradução integral. Mas, comparando o primeiro
capítulo da adaptação com o da tradução integral, vi que se fizesse isto meu
filho responderia a prova toda errada. Percebi que o adaptador possivelmente
entendia como fidelidade à obra original a manutenção de linhas gerais do
enredo, o que dispensava como secundário passagens descritivas, mesmo aqueles
de grande funcionalidade simbólica. Meu Deus, nesta linha interpretativa o que
sobraria de Balzac, Alencar e Eça? Imagine a seguinte passagem, conhecidíssima,
de O primo Basílio:
E Luísa tinha
suspirado, tinha beijado o papel devotamente!
Era a primeira vez que lhe escreviam aquelas sentimentalidades, e o seu orgulho
dilatava-se ao calor amoroso que saía delas, como um corpo ressequido que se
estira num banho tépido; sentia um acréscimo de estima por si mesma, e
parecia-lhe que entrava enfim numa existência superiormente interessante, onde
cada hora tinha o seu encanto diferente, cada passo conduzia a um êxtase, e a
alma se cobria de um luxo radioso de sensações!
Ergueu-se de um salto, passou rapidamente um roupão, veio
levantar os transparentes da janela... Que linda manhã! Era um daqueles dias do
fim de agosto em que o estio faz uma pausa; há prematuramente, no calor e na
luz, uma certa tranqüilidade outonal; o sol cai largo, resplandecente, mas
pousa de leve; o ar não tem o embaciado canicular, e o azul muito alto reluz
com uma nitidez lavada; respira-se mais livremente; e já se não vê na gente que
passa o abatimento mole da calma enfraquecedora. Veio-lhe uma alegria:
sentia-se ligeira, tinha dormido a noite de um sono são, contínuo, e todas as
agitações, as impaciências dos dias passados pareciam ter-se dissipado naquele
repouso. Foi-se ver ao espelho; achou a pele mais clara, mais fresca, e um
enternecimento úmido no olhar.
Pela
lógica que rege a maioria das adaptações, de uma a três frases seriam
suficientes para resumir este trecho. Bastava algo banal como “Luísa recebeu a
carta e ficou delirante de paixão, se sentido muito feliz e satisfeita consigo”.
Ou seja, a adaptação mataria tudo o que no trecho eciano há de ironia e
crítica, de consonância do autor com as crenças psicofisiológicas da época, de
ampliação das possibilidades semânticas e estilísticas do uso do adjetivo em
língua portuguesa.
Se
O primo Basílio é levado ao cinema,
se vira peça teatral ou seriado televisivo, muita gente desculpa as supostas
infidelidades argumentando, com justiça, que cinema, teatro e televisão têm
suas próprias regras, que neste caso adaptação fiel não implica reprodução ipsis litteris. No entanto, se alguém reduz a narrativa de
mesma obra, que na minha edição (São Paulo, Ática, 1997) ultrapassa as 320
páginas, para 60 páginas muita gente ainda quer achar que se trata da mesma
obra. E o que dizer, para citar um caso mais extremo, da Divina Comédia, que é traduzida, vertida em prosa e reduzida para
50 páginas. Em suma: a qualidade literária de uma adaptação (se é que alguma
possui essa qualidade) deve ser aferida sem remissão à obra em que se baseou,
já que são duas coisas diferentes.
Fiz
uma digressão sobre as adaptações e agora retomo minha reflexão central. Por
que a tal saga, intitulada Deltora Quest,
e escrita pela australiana Emily Rodda, chamou tanto a atenção de meu filho, e
o tem feito reconsiderar o valor da leitura? Li 3 capítulos do terceiro livro (A cidade dos ratos) e 2 capítulos do
primeiro livro (As florestas do silêncio)
e pude perceber algumas coisas. O primeiro livro exibe algumas sofisticações,
como digressões e fragmento de livros dentro de livro, mas nem por isso perde a
fluência narrativa. O terceiro me pareceu mais fluente, com diálogos mais
redundantes ainda, vocábulos difíceis postos espertamente em contextos que
permitem ao leitor adivinhar o sentido. Talvez essa diferença se explique pelo
fato de eu só ter lidos trechos; talvez no terceiro volume a autora já
estivesse mais segura e íntima do processo, com a narrativa mais sob controle.
Há outros ingredientes gerais que atraem os leitores juvenis, sempre
condicionados a um narrar fluente e até elegante, não obstante aqui a ali se apresente
um clichê: a ambientação medieval; a narrativa desenvolvida em etapas ou fases,
como num jogo de vídeo-game; e heróis infanto-juvenis para todo gosto, dos
valentes aos astutos, cujo carisma desperta uma adesão quase imediata.
Não
nutro a menor ilusão de que meu filho salte de Emily Rodda para os clássicos.
Mais provável é que passe para Harry Potter e similares, ou simplesmente
volte-se com exclusividade aos filmes de entretenimento e aos games. Mas seu eu
comecei com Jogando com Pelé, não é
impossível que Rodda ajude. Aliás, não serei cético: ajuda, e ajuda muito mais
que as adaptações que ele lê na escola para fazer prova. Por enquanto acompanho
a leitura dele meio de longe, falo de outras histórias similares e guardo
aquele aforismo de Harold Bloom como um amuleto:
“Não
devemos recear o fato de nosso conhecimento como leitores parecer por demais
autocentrado, pois, se nos tornamos leitores autênticos, os resultados dos
nossos esforços nos afirmarão como portadores de luz a outras pessoas” (In: Como e por que ler, 2001, p. 20-21).
Post-scriptum 2013: Escrevi o texto
acima em 2011. Contínuo na luta para fazer do Ícaro um leitor. Contínuo
progredindo, ainda que devagar. A paixão dele agora são os mangás e as graphic
novels. Ele ficou na leitura só de 3 livros da saga escrita por Rodda e depois
encheu o saco. Em seguida, ficou fissurado na série Diário de um banana, da qual leu 5 livros. Hoje ele anda lendo os
mangás O chamado, Diário do futuro, Death Note e Naruto.
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