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segunda-feira, 27 de maio de 2013

Como delimitar o que seja plágio acadêmico?


Como delimitar o que seja o plágio acadêmico? Eis uma pergunta nada fácil de se responder. Tive ideias minhas, de minha dissertação defendida em 2005, reelaboradas com um requinte duvidoso - e sem me citarem. Meu Deus! O respeito à propriedade intelectual, o barato pedágio que é a citação, não tiram mérito de ninguém. Fosse ao menos um ensaio eu até entenderia, diria com Ortega y Gasset que o ensaio é a ciência menos a prova. Mas não: trata-se de um texto acadêmico, no qual dezenas de sartres mal digeridos figuram na copiosa bibliografia final para a pessoa posar de culta. Como ninguém pode posar de culto citando a mim, aproveitaram-me o tutano mas fui expulso da bibliografia.

sexta-feira, 24 de maio de 2013

Alexandra (2007), de Alexander Sokurov


Uma avó vai visitar seu neto num acampamento militar, num período de guerra. Quantos narradores, na literatura e no cinema, levariam a cabo uma história com este mote sem cair em pieguice ou sem reduzir a arte à condição de propaganda?

Pois esse mote é conduzido com rara sensibilidade e contenção dramática em Alexandra (2007), do siberiano Alexander Sokurov. Alexandra faz parte de um conjunto maior, que explora as singularidades e os dilemas das relações familiares, e que a crítica costuma referir-se como ciclo de histórias familiares. Até agora vieram à tona Mãe e Filho (1997), obra-prima absoluta, e o polêmico Pai e Filho (2003), que eu ainda não vi.

No inovador Mãe e Filho, onde o diretor explorou novas possibilidades para a imagem no cinema, a moldagem era claramente arquetípica, ao passo que neste Alexandra, Sokurov equilibra com invulgar perícia as abordagens mítica e história. A história sobre a avó e o neto está localizada num espaço e num tempo bastante tangível: a fronteira da Chechênia, num período recente de guerra. Com isso, ainda que o trabalho refinado e anti-naturalista com a imagem esteja presente, há um sentido de urgência nela que dá aos planos um tom de documentário. Estamos afastados da lentidão estratégica e do diálogo com a pintura comum ao cinema de Sokurov, e levado a um resultado único na história do cinema com Mãe e Filho. A câmera, em boa parte do tempo, adere à perspectiva da avó (vivida por Galina Vishnevskaya), acompanhando-a em suas descobertas com a mesma curiosidade e urgência de novas descobertas. Com isto, Sokurov evita uma perspectiva onisciente, que permitiria um julgamento peremptório sobre aquela guerra (ou mesmo sobre a guerra). Alexandra (a protagonista) é a sonda que esquadrinha aquele microcosmo sem respeitar normas internas ou fronteiras – chega a conhecer e fazer amizade com pessoas do outro lado da fronteira, na Chechênia, mas nem por isso se indispõe com os soldados russos, que, visivelmente saudosos e carentes, tratam-na como mãe ou avó.  Ela é o ponto cego que permite ao cineasta ver sem se comprometer demais.

Como é costume no cinema de Sokurov, não há em Alexandra propriamente um enredo com um conflito a resolver, mas “ilhas” dramáticas, situações-limite construídas pelo cineasta numa atmosfera de poesia e intimidade (não há, porém, nessas situações-limite aquele tom apolítico nem a necessidade de um confessar tudo, nem que o mundo desabe, corriqueiro em Dostoievski, a quem o cineasta se confessa leitor e admirador).  Em Alexandra, o motor da história é a presença desestabilizadora de uma avó que, à revelia talvez de seu desejo, torna-se gradativamente a avó daquele acampamento, desnudando o que no fundo aqueles jovens soldados são: meninos carentes, sem uma perspectiva de vida bem delineada. É de grande sutileza a postura anti-bélica de Sokurov: não há discursos edificantes contra a guerra nem cenas com vítimas fragilizadas que perderam um membro ou se feriram gravemente. O que se mostra, nunca de forma escancarada, é como a guerra impede o desenvolvimento de dons potenciais ou embrutece quem nem chegou a descobrir seus dons. Mas, reiterado, Alexandra não nem caricato nem megalomaníaco. Felizmente, Alexandra não é mais uma dessas pacifistas do Greenpeace ou similares.

Freqüentemente, vemos filmes que, de forma paradoxal, são contra a guerra, mas se comprazem em mostrá-la na tela com uma curiosidade pornográfica. Alexandra não é isso: é antes de qualquer coisa um filme de bastidores, que nega a guerra apostando que o espectador se contentará com sua presença pressuposta. Ou seja: é o filme de uma pessoa madura o suficiente para saber que não precisa enriquecer o arquivo sanguinário das cenas de guerra, arquivo este que já é patrimônio de qualquer adolescente que viva onde exista ao menos uma televisão.

Falei do solo histórico em que o filme se planta e como discute a guerra, mas há esta outra questão crucial na obra: a moldagem arquetípica em que se enquadra a relação entre a avó e seu neto. Sobre este ponto Alexander Sokurov não constrói um discurso positivo, opiniático, e nem seria preciso. O lugar-comum já diz: avó é mãe com açúcar. Interessa mais (e isso ele faz de forma inigualável) explorar as situações sensoriais em que esse amor desmedido se apresenta, entre frases banais e declarações exageradas; entre olhares silentes (que lêem na roupa e nos detalhes do corpo qual a situação do ser amado) e abraços sem fim. Em Sokurov, o amor familial atinge tal intensidade que alguns críticos viram ali o aceno constrangedor do fantasma do incesto. Nunca é demais lembrar que Sokurov é um russo, e que o ressentimento é algo humano, demasiado humano. Mas talvez este que fala esteja cego, como estava o diretor russo quando filmou, pela luz amorosa que emanava de seus avós.

sexta-feira, 17 de maio de 2013

Peões (Brasil, 2004), de Eduardo Coutinho


Eduardo Coutinho é o Balzac do cinema brasileiro, no sentido de que cada documentário seu é um fragmento de um imenso e bem tecido painel da humana comédia que vivemos, uma faceta do que somos. Há em Coutinho, não saberia dizer se conscientemente, um impulso ao mesmo tempo épico e ético que domina suas decisões como diretor. Épico, pela fome de mostrar; ético, pelo cuidado com o “como” mostrar: o Outro, em Coutinho, é quem deve falar. Já disse e repito aqui de novo: a arte de Coutinho é a arte de ouvir.

Arte de ouvir significa, entre outras coisas, cuidar para que não haja ruído, que por sua vez significa purificar a técnica. Neste sentido, Coutinho é um artista do menos, um artista da subtração. Assombra em Coutinho a limpidez, a espontaneidade: tudo é tão direto que parece fácil. Neste cinema sem ruídos, cinema em grau zero, o desaparecimento do efeito leva igualmente ao desaparecimento do defeito: as idéias de perfeição e beleza perdem o sentido, ou pelo menos são deslocadas para outro valor: a verdade. A verdade é que é bela e perfeita.

Peões (2004), direi logo de partida, é o mais fraco documentário do Eduardo Coutinho a que já assisti. Ele não foge inteiramente à descrição que fiz acima, mas nele a paixão do homem Coutinho, homem de esquerda, homem que admira o homem Luiz Inácio Lula da Silva, deixou o ruído da paixão falar alto. Não questiono aqui, é óbvio, a paixão em si do diretor – até porque, apesar dos senões, também eu tenho simpatia por Lula –, mas como este ardor rebaixa a faceta mais bela e inegociável de outros seus documentários: sua dimensão ética. A sensação que tive ao assistir o documentário foi a de ver um jogo de cartas marcadas, pois já sabia de antemão que os depoentes (todos ex-companheiros de Lula nas épicas greves operárias do ABC, entre o final da década de 70 e início da década de 80) iriam tecer loas ao Luiz Inácio.

Embora falhando em sua motivação profunda – porque, insisto, o fundamento da arte de Coutinho é ético (verdade), e não estético (beleza) –, Peões logra muitos acertos. Um desses acertos, talvez o maior deles, remete à escolha do “formato” do documentário, que dá um tratamento intimista para uma matéria épica, humanizando as figuras em vez de torná-las monumentos. Coutinho faz o documentário equilibrar de formar louvável memória coletiva e memória individual. Ninguém é reduzido a monstro, nem a super-homem... exceto Lula.

Ao final, só ao final, um depoente explica a Eduardo Coutinho e a nós o que é ser peão, aspecto que revela um traço singular do cinema de Coutinho: sua destemida abertura ao Outro, sua imersão aventureira pelo desconhecido, seu horror por fórmulas pré-concebidas que exorcizam o acaso. Em Peões, é forçoso admitir, restringiu-se este sentido de aventura.



sábado, 11 de maio de 2013

Coraline e o mundo secreto (Coraline, EUA, 2009)


Foi Walter Benjamin quem decretou o fim narrativa tradicional, associando este fato ao descrédito da experiência no horizonte da sociedade capitalista industrial, onde a sabedoria é substituída pela informação pragmática e a tradição pelo culto da novidade. Na leitura de Benjamin, os contos maravilhosos, os mitos, as epopéias, os provérbios, enfim, as formas de narrativa tradicionais deram lugar ao romance (forma narrativa degenerada, por se calcar na busca de um sentido, e não na transmissão de experiência) e à informação jornalística, formas alijadas da experiência.

Mas a história, como bem sabia Benjamin, não é seta sempre rumando adiante. E, seja por nostalgia, seja por gesto de resistência, a narrativa persiste aqui e ali, restaurando a magia dos mitos e tentando reencantar este mundo desencantado – como nesse Coraline e o mundo secreto (2009), de Henry Selick. Adaptação do romance homônimo de Niel Gaiman, Coraline revisita mitos clássicos (a história de Orfeu, a alegoria da caverna de Platão), contos de fada (João e Maria) e narrativas infanto-juvenis (Pinóquio, Alice no País das Maravilhas) para construir , em harmonia com suas fontes de inspiração, uma história de crescimento e transformação ao mesmo tempo imbuída de uma franca intenção pedagógica, mas evitando um didatismo fácil, moralista e cafona em que certo cinema “politicamente correto” feito para crianças se esbalda. Selick, como Tim Burton e Hayao Miyazaki, não se dispõe a dourar a pílula da aprendizagem: a conquista do autoconhecimento passa aqui pela dor e pelo medo em estado crus. Talvez por isto, em várias partes, crianças fizeram cara feia para Coraline, e educadores torceram o nariz para a pungência de certas cenas do filme.

A história de Coraline é a de um rito de passagem (da infância à adolescência): Coraline Jones, a protagonista, vive numa família pouco acolhedora (os pais sempre com a cara enfiada no computador), tem vizinhos malucos e um colega bastante inconveniente. A modorra de sua vida é quebrada quando ela descobre, no casarão onde mora, uma passagem secreta para um mundo paralelo ao mesmo tempo belo e sinistro, onde vivem seus “outros” pais, simulares fisicamente aos pais “verdadeiros” exceto por um detalhe: terem botões no lugar de olhos. (Diga-se de passagem, umas das maiores vitórias do filme, do ponto de vista técnico, foi o uso da profundidade de campo para diferençar os dois mundos). Esse outro mundo, que a princípio se mostra tão acolhedor, começa a derruir – moralmente falando, mas também em sua consistência ontológica – quando Coraline descobre que, se quiser ficar por lá, abandonando seus pais “verdadeiros”, terá de ... renunciar aos olhos (perceba o leitor o sentido simbólico), trocando-os por botões. E paro aqui de comentar o enredo. O dilaceramento de Coraline entre os dois mundos, como nos filmes de Tim Burton, de quem Selick já foi parceiro, é condição de aceitação da precariedade deste mundinho em que vivemos. Coraline, passado o rito, superado os medos, aprende a compreender, e não apenas a querer ser compreendida. Aprendizado difícil, e não só para crianças.
 

terça-feira, 7 de maio de 2013

As frases atribuídas a Clarice no Facebook


O Facebook está cheio de frases atribuídas a Clarice Lispector, muitas delas de um gosto bastante duvidoso. No início, assim como ocorreu a muitos cultos e pseudocultos que conheço, eu fiquei irritado com essas falsas atribuições. Mas parei, reparei e reconsiderei. Posso e devo, como professor, avisar a meu aluno do engano, mas considerar só o lado negativo de tal engano é uma atitude precipitada.

Em primeiro lugar, quase 100% das frases não clariceanas atribuídas a Clarice tem um quê clariceano, uma nesga epifânica, certa sabedoria do corpo em primeiro plano ou aquela alegria trágica que por vezes me desagrada, porque me parece, com todo respeito, brega. Em segundo lugar, se o povo (ai, que ninguém me peça para definir “povo”!) dá de presente essas frases a Clarice, é porque a admira e a respeita. Se muita gente valoriza e repassa essas frases sem se dar conta de como muitas vezes são bobinhas é porque o nome da autora pesa muito, tem autoridade, é admirado. Isto pode uma vez ou outra ser opressivo (como os pós-estruturalistas Barthes e Foucault pensavam), mas quase sempre é apenas um gesto de humildade, pequeno mas importante, sem o qual é mais difícil apreendemos a fundo um autor. Um dos grandes desastres das nossas pós-graduações é achar que, em leitura, a hermenêutica crítica pode preceder, e até substituir, a hermenêutica compreensiva. 

Quem nunca colecionou como pérola frases imbecis de roqueiros, lidas na Bizz ou na Rock Brigade, que atire a primeira pedra. Eu colecionei, boa parte de meus amigos e amigas fizeram o mesmo. O intelectual gosta de fantasiar sua biografia e ver-se lendo Dostoievski e Kafka aos 12 ou 13 anos; mas a verdade é que muita gente, incluindo a minha pessoa, a essa idade ainda estava na Turma da Mônica ou, no máximo, na série Vagalume. Antes de ler Sartre, Dostoievski, Shakespeare e Nietzsche eu colecionava aforismos deles – ou atribuídos a eles. E mais: ficava esperando uma ocasião adequada para soltar um aforismo no meio dos meus amigos e me passar por inteligente. Eu guardava com ciúme as frases de Shakespeare e pedia a Deus (sem acreditar em Deus) que não me permitisse morrer antes de ler Shakespeare. Não acho impossível que uma parte dos leitores das pérolas clariceanas via Facebook procurem pelos livros delas. As falsas atribuições, como sabia Jorge Luis Borges, também enriquecem o patrimônio literário.
  

sexta-feira, 3 de maio de 2013

A memória de Ulisses (RJ, Civilização Brasileira, 2006)


[Esta resenha saiu anteriormente na dEsEnrEdoS]


Ortega y Gasset foi um dos primeiros críticos do especialismo, que ele identificava como uma nova forma de barbárie. Ortega reconhecia a importância da especialização para o desenvolvimento da ciência, mas sabia o quanto ela mediocrizava as pessoas. O especialista, para Ortega, era uma espécie de sujeito anfíbio, nem ignorante nem sábio, que a democracia liberal e a técnica fizeram surgir. Não é um ignorante porque conhece as teses que circulam em sua limitada gleba; não é sábio porque, fora de seu espaço estreito, desconhece tudo. Ortega o chama um tanto ironicamente de um “sábio-ignorante” e vê nele, nesse homem-massa do campo intelectual, um grande problema, primeiro por sua arrogância habitual (é especialista, mas pensa que pode falar com autoridade de tudo, ignorando que haja especialistas em áreas que ele desconhece) e segundo porque este tipo emperra o desenvolvimento de certas ciências, já que lhe falta, entre outros dons, a consciência de como seu saber se liga à sociedade.
                                              
Esta crítica de Ortega y Gasset à “barbárie do especialismo” data de 1930 e perece-me mais do que nunca pertinente no Brasil, onde a pós-graduação continua em expansão. Não se trata de cuspir no prato em que comeu e condenar in totumo especialismo. Mas, não resta dúvida, ele trouxe seus prejuízos. Um deles foi afastar (mais ainda), pelo menos no que se refere à crítica literária, a universidade da sociedade. Tal afastamento tem dupla motivação: a linguagem técnica e a perda de visão de conjunto.

Mas, como dizia o poeta Holderlin, onde crescem os perigos, cresce também o socorro. Há focos de resistência, pelo mundo todo, contra este estado de coisas. Um Harold Bloom, um George Steiner, um Alfonso Berardinelli, por mais diferentes que sejam entre si, no estilo e no modo de entender o que é e qual o papel da literatura, têm em comum o fato de se recusarem a limitar suas audiências ao público especializado das universidades. Para eles, a literatura serve ao homem, e não apenas aos alunos e professores de departamentos de Letras. Um representante dessa plêiade no Brasil é Marco Lucchesi. Vejo em Lucchesi – embora ainda esteja em processo meu conhecimento de sua obra crítica (as traduções e as poesias eu já conhecia) – um continuador de Augusto Meyer, de Carpeaux, de Guilherme Merquior, isto é, do modelar homem erudito que se dispõe a exercer um papel pedagógico via imprensa e comunicação oral, desenvolvendo no público o gosto da leitura eclética (vários gêneros, de vários países) e desarmada de excessivos compromissos ideológicos.

Esta semana li com prazer A memória de Ulisses(Civilização Brasileira, RJ, 2006), obra em que Lucchesi reúne quase meia centena de textos breves, em geral do gênero ensaio. A primeira coisa que fiquei pensando foi como pude ter demorado tanto para descobrir o veio crítico de Lucchesi. Lembrei de ter lido 3 ou 4 textos do livro, quando de sua publicação em jornais de grande circulação. Mas pensei tratar-se de colaborações eventuais do homem que já conhecia como respeitado tradutor. Enganei-me, e o que importa agora é recuperar o tempo perdido, lendo mais ensaios do autor.

Marco Lucchesi é o contrário do especialista limitado e arrogante de Ortega, e tampouco se trata de um diletante. Apesar do desgaste semântico do termo e de seu anacronismo, diria de forma aproximativa que Lucchesi é um humanista, alguém cuja curiosidade abrange as humanidades e uma boa quantidade de idiomas ocidentais e orientais. Munido desse arsenal intelectual, Lucchesi opta, porém,  pelo papel de pedagogo: escreve para ensinar e deleitar (docere cum delectare), portanto escreve de forma persuasiva e didática, partindo das próprias experiências, não fazendo a menor questão de esconder o entusiasmo de suas descobertas. Trata-se de um lídimo ensaísta, o estilo equilibrando arte e erudição, a subjetividade franca mas avessa ao impressionismo crítico, já que temperada pela erudição.

À primeira folheada em A memória de Ulisses, podemos nos assustar. Quem fala aí? Um biógrafo diletante? Um scholar dos mais pedantes? A lista assusta: Ovídio, Rumi, Dante, Cervantes, Vieira, Villon, Goethe, Novalis, Ibsen, Blok, Pasternak, Hesse, Gadda, Drummond, Calvino. Pouco? Que tal Splenger e Gibbon, e mais ainda Montaigne, Descartes, Schopenhauer, Nietzsche, Kant, Bordieu, Virilio e Vattimo. Some a isso reflexões sobre a tradução, o vazio espiritual de nosso tempo, a amizade (com Nise da Silveira), a leitura e até sobre o gato. Pois Marco Lucchesi trata de tudo isso como matéria viva: o livro, para ele, tem uma força transcendente e os autores são como amigos. Lucchesi pratica uma hermenêutica compreensiva, reconstruindo com  cuidado e elegância estilística o pensamento do autor que aborda, por vezes deixando-se contaminar pelo estilo do autor em debate – o que não lhe impede, hora nenhuma, de discordar, de exercer a crítica quando julga justa, como vemos, por exemplo, no ensaio sobre Spengler. Surpreende, neste estilo de Lucchesi, a beleza e a verdade de determinados juízos, às vezes expressos numa frase, mostrando que sua paixão por Novalis, Nietzsche e Schopenhauer afinou-lhe um veio aforismático. No texto sobre Pasternak, ao se referir ao romance russo, solta este: “O romance russo é a épica da pietas”.  Encerra o breve texto sobre Schopenhauer (em duas páginas diz mais sobre este autor do que na maioria das histórias da filosofia que eu pude ler!) com estas frases: “Destruir a vontade. Trabalhar o nirvana. Superar o puro instinto, para atingir a piedade cósmica – eis a saída possível. E, assim, numa realidade de escombros, surge um mundo em que brilham os raios do nada, com suas estrelas e galáxias, sobre a vida do pensamento – as maravilhosas páginas de O mundo como vontade e representação”. No magnífico ensaio que encerra o livro, sobre a obra-prima de Cervantes, diz a certa altura: “A derrota no Quixote atinge o sublime. E como soa estranho nos dias atuais, de insossas vitórias curriculares, e nanotriunfalismos, apontar o sublime da derrota. Não aquele do homem acabado de um Papini, mas a tensão da Esperança de um Bloch. Dom Quixote realiza a biografia do erro. Mas atenção: trata-se de um grande erro. Coisa mais bela e comovente do que a mera biografia de um punhado de acertos.[negrito meu]”

Naturalmente, eu poderia acumular mais achados, em A memória de Ulisses, em que o zelo estilístico colabora para acentuar o brilho da verdade. Mas fiquemos naqueles. Imagino que cada leitor há de encontrar os seus, assim como a cada leitor este ou aquele texto tocará mais fundo. A mim, por exemplo, que não professo nenhuma paixão intensa pelos gatos, pareceu-me constrangedor “The naming of cats”, que o autor corajosamente pôs como ensaio de abertura. Me comoveu e me deixou feliz  “Cartas da prisão” e “Herman Hesse: felicidade”; me foi bastante instrutivo “Traduções da Divina Comédia”; achei bastante justa a avaliação sobre Pierre Bordieu, um pensador a quem não nutro simpatia, em “As regras de Bordieu” (outro mérito desse mesmo ensaio é a reflexão sobre a crítica literária subjacente nele); ademais, os ensaios sobre Goethe, Ibsen, Splenger, Montaigne, Schopenhauer, Rumi e Cervantes (Quixote) têm meu assentimento afetivo e intelectual. E é normal que entre mais de 40 textos alguns poucos não me tocaram, menos por culpa do autor do que por se tratar de escritores a quem eu li pouco ou nada.

Penso que devemos nos rejubilar pela presença, em nosso meio intelectual, de um não-especialista que se dispõe a partilhar sua cultura universal conosco, assumindo uma tocha pedagógica a que muita gente de talento comprovado corre com medo, por egoísmo ou seja lá o que for. Não bastasse isso, Marco Lucchesi partilha uma dádiva que aprendi há algo tempo a apreciar em Jorge Luis Borges e em Harold Bloom: a capacidade de comunicar o entusiasmo perene que as grandes leituras deixam em nossa memória.