Eduardo
Coutinho é o Balzac do cinema brasileiro, no sentido de que cada documentário seu
é um fragmento de um imenso e bem tecido painel da humana comédia que vivemos,
uma faceta do que somos. Há em Coutinho, não saberia dizer se conscientemente,
um impulso ao mesmo tempo épico e ético que domina suas decisões como diretor.
Épico, pela fome de mostrar; ético, pelo cuidado com o “como” mostrar: o Outro,
em Coutinho, é quem deve falar. Já disse e repito aqui de novo: a arte de
Coutinho é a arte de ouvir.
Arte
de ouvir significa, entre outras coisas, cuidar para que não haja ruído, que por
sua vez significa purificar a técnica. Neste sentido, Coutinho é um artista do
menos, um artista da subtração. Assombra em Coutinho a limpidez, a
espontaneidade: tudo é tão direto que parece fácil. Neste cinema sem ruídos,
cinema em grau zero, o desaparecimento do efeito leva igualmente ao
desaparecimento do defeito: as idéias de perfeição e beleza perdem o sentido,
ou pelo menos são deslocadas para outro valor: a verdade. A verdade é que é
bela e perfeita.
Peões (2004), direi logo
de partida, é o mais fraco documentário do Eduardo Coutinho a que já assisti.
Ele não foge inteiramente à descrição que fiz acima, mas nele a paixão do homem
Coutinho, homem de esquerda, homem que admira o homem Luiz Inácio Lula da
Silva, deixou o ruído da paixão falar alto. Não questiono aqui, é óbvio, a
paixão em si do diretor – até porque, apesar dos senões, também eu tenho
simpatia por Lula –, mas como este ardor rebaixa a faceta mais bela e
inegociável de outros seus documentários: sua dimensão ética. A sensação que
tive ao assistir o documentário foi a de ver um jogo de cartas marcadas, pois
já sabia de antemão que os depoentes (todos ex-companheiros de Lula nas épicas
greves operárias do ABC, entre o final da década de 70 e início da década de
80) iriam tecer loas ao Luiz Inácio.
Embora
falhando em sua motivação profunda – porque, insisto, o fundamento da arte de
Coutinho é ético (verdade), e não estético (beleza) –, Peões logra muitos acertos. Um desses acertos, talvez o maior
deles, remete à escolha do “formato” do documentário, que dá um tratamento
intimista para uma matéria épica, humanizando as figuras em vez de torná-las
monumentos. Coutinho faz o documentário equilibrar de formar louvável memória
coletiva e memória individual. Ninguém é reduzido a monstro, nem a super-homem...
exceto Lula.
Ao
final, só ao final, um depoente explica a Eduardo Coutinho e a nós o que é ser
peão, aspecto que revela um traço singular do cinema de Coutinho: sua destemida
abertura ao Outro, sua imersão aventureira pelo desconhecido, seu horror por
fórmulas pré-concebidas que exorcizam o acaso. Em Peões, é forçoso admitir, restringiu-se este sentido de aventura.
Nenhum comentário:
Postar um comentário