Foi
Walter Benjamin quem decretou o fim narrativa tradicional, associando este fato
ao descrédito da experiência no horizonte da sociedade capitalista industrial,
onde a sabedoria é substituída pela informação pragmática e a tradição pelo
culto da novidade. Na leitura de Benjamin, os contos maravilhosos, os mitos, as
epopéias, os provérbios, enfim, as formas de narrativa tradicionais deram lugar
ao romance (forma narrativa degenerada, por se calcar na busca de um sentido, e
não na transmissão de experiência) e à informação jornalística, formas alijadas
da experiência.
Mas
a história, como bem sabia Benjamin, não é seta sempre rumando adiante. E, seja
por nostalgia, seja por gesto de resistência, a narrativa persiste aqui e ali, restaurando
a magia dos mitos e tentando reencantar este mundo desencantado – como nesse Coraline e o mundo secreto (2009), de
Henry Selick. Adaptação do romance homônimo de Niel Gaiman, Coraline revisita mitos clássicos (a
história de Orfeu, a alegoria da caverna de Platão), contos de fada (João e
Maria) e narrativas infanto-juvenis (Pinóquio,
Alice no País das Maravilhas) para
construir , em harmonia com suas fontes de inspiração, uma história de
crescimento e transformação ao mesmo tempo imbuída de uma franca intenção
pedagógica, mas evitando um didatismo fácil, moralista e cafona em que certo
cinema “politicamente correto” feito para crianças se esbalda. Selick, como Tim
Burton e Hayao Miyazaki, não se dispõe a dourar a pílula da aprendizagem: a
conquista do autoconhecimento passa aqui pela dor e pelo medo em estado crus. Talvez
por isto, em várias partes, crianças fizeram cara feia para Coraline, e educadores torceram o nariz
para a pungência de certas cenas do filme.
A
história de Coraline é a de um rito
de passagem (da infância à adolescência): Coraline Jones, a protagonista, vive
numa família pouco acolhedora (os pais sempre com a cara enfiada no
computador), tem vizinhos malucos e um colega bastante inconveniente. A modorra
de sua vida é quebrada quando ela descobre, no casarão onde mora, uma passagem
secreta para um mundo paralelo ao mesmo tempo belo e sinistro, onde vivem seus
“outros” pais, simulares fisicamente aos pais “verdadeiros” exceto por um
detalhe: terem botões no lugar de olhos. (Diga-se de passagem, umas das maiores
vitórias do filme, do ponto de vista técnico, foi o uso da profundidade de
campo para diferençar os dois mundos). Esse outro mundo, que a princípio se
mostra tão acolhedor, começa a derruir – moralmente falando, mas também em sua
consistência ontológica – quando Coraline descobre que, se quiser ficar por lá,
abandonando seus pais “verdadeiros”, terá de ... renunciar aos olhos (perceba o
leitor o sentido simbólico), trocando-os por botões. E paro aqui de comentar o
enredo. O dilaceramento de Coraline entre os dois mundos, como nos filmes de
Tim Burton, de quem Selick já foi parceiro, é condição de aceitação da
precariedade deste mundinho em que vivemos. Coraline, passado o rito, superado
os medos, aprende a compreender, e não apenas a querer ser compreendida. Aprendizado
difícil, e não só para crianças.
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