Bruno
Dumont não é um cineasta fácil. Seu ponto de vista é sempre muito pessoal, ele
nunca ilustra em seus filmes pensamentos das doutrinas correntes. Ex-professor
de Filosofia, costuma dizer que é leitor contumaz da mística cristã, mas se diz
convictamente ateu. Seus filmes, especialmente os últimos, abordam questões
teológicas como o problema do mal e o embate entre a natureza e a graça. Diria
que Dumont lida em seus filmes com personagens místicos de um modo distanciado
porém jamais frio. Mas todo personagem de Dumont, por melhor que queira ser, é
um danado. Parece que não agrada ao cineasta a idéia de pureza: o homem sempre
lhe parece barroco.
Mas,
quando disse que Dumont é um cineasta difícil, não queria tanto enfatizar seu
pensamento. Queria falar – mas acabei me delongando noutra seara – do seu
estilo. Planos lentos e enquadramentos rigorosamente calculados.
Desdramatização absoluta, ao ponto de os personagens parecem mais zumbis declamando
com sacrifício o texto. A paisagem é sempre rural e modorrenta, e a dialética
homem versus natureza é muito dinâmica: aqui a natureza pode ser aliada, mas
logo ali é a madrasta. De qualquer forma, ela participa ativamente do drama.
Música de fundo não há; só os sons da natureza. E, não raras vezes, um silêncio
absoluto. Os personagens falam pouco e só bagatelas; na verdade, ninguém se
comunica com ninguém. Apesar de debater assuntos elevados em seus filmes,
nenhum personagem de Dumont é capaz de emitir uma fala solene. Mesmos os corpos
não conseguem “falar”: em todos os seus filmes, inclusive neste Fora de Satã, o sexo serve apenas para
rebaixar o homem à condição animal: são sempre dois bichos agarrados um ao
outro, não há alma, menos ainda lirismo. A nudez é constante nos filmes de
Dumont, mas ela não nos excita.
Temo
ter construído uma imagem pesada do cineasta, que afugente alguns cinéfilos,
mas não posso mentir. E, para completar
a bagaceira, aviso que todos os processos de Dumont são radicalizados neste estranhíssimo
Fora de Satã. Como eu poderia definir
este filme? Concisamente, diria que é a tentativa de conciliar a austeridade e
o rigor de inspiração bressoniana com o horror teológico (ou metafísico, seja
lá como se chame) típico de filmes B. Quem assistiu ao Anticristo (2009) de Lars Von Trier imagine este filme
infinitamente mais austero, sem os sustos fáceis, que chegará perto do que é Fora de Satã. Quero dizer: ambos são
cineastas que substituem o repertório terapêutico moderno pela velha teologia e
um de seus temas mais apaixonantes: a natureza humana e o mal.
Fora de Satã acaba, continua
ressoando em nossa cabeça e não sabemos lidar – pelo menos eu não soube lidar –
com a ambigüidade do personagem central. Um messias? Um assassino? Enfim, a
apreciação desse filme nos cobra caro; o caráter cíclico da película e a falta
de explicação dos acontecimentos, a certa altura, enchem a paciência. Começamos
a pensar se por trás daquela lentidão e daquele silêncio há de fato uma verdade
profunda, difícil de se plasmar em palavras e imagens, ou apenas o tédio de um
mundo rigoroso mas vazio, construído pela mão de um misantropo. Sinceramente,
vi o filme duas vezes e não sei responder.