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terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

Valente (Brave, EUA, 2012)



[Escrevi este breve texto no dia em que Valente estreou no Brasil. Como o filme venceu o Oscar de melhor animação, reproduzo aqui minha primeira impressão do filme – impressão, aliás, que permanece firme.]

A fórmula de Valente, novo filme da Pixar dirigido por Brenda Chapman e Mark Andrews, não é nova: o uso da estrutura do conto de fadas para refletir valores da sociedade democrática liberal é um dos lugares-comuns da estética pós-moderna no cinema. Tal tendência, repisada com insistência desde estrondoso sucesso da série Shrek, deixa implícita a ideia de que a mensagem milenar das fábulas e contos de fada envelheceu, o que me parece uma cegueira típica do culto presentista pós-moderno e sua falta de relativismo histórico. A mim, me parece claro que o anacronismo deliberado que filmes como Valente exibem não visam apenas à produção da comicidade mas também reforçam a presunção, sob diversos ângulos tola, de que vivemos numa época melhor, mais humana, mais inclusiva.

Valente é um conto de fadas feminista, que apresenta uma defesa das deliberações individuais sobre os ditames prescritos pela comunidade. Merida, filha da rainha Elinor e do rei Fergus, é criada, desde pequena, sob valores e práticas mais cabíveis, segundo aquele modelo social, a um varão. O pai de Merida, um brutamonte ingênuo mas muito dedicado à família, é o responsável por tal educação vanguardista da princesa, pois a mãe, pelo contrário, é uma tradicionalista ferrenha. Delineia-se, assim, um conflito entre as figuras arquetípicas da Mãe e da Filha: a tradicionalista rainha quer que sua filha Merida curve-se à tradição e casa-se com um dos pretendentes vindos de reinos vizinhos a fim de manter o equilíbrio político entre aqueles reinos. Mas além dos pretendentes serem tolos e desinteressantes, a princesa de cabelos ruivos e soltos (símbolo de sua rebeldia contra os costumes e usos do reino) é uma feminista avant la lettre – e, assim, reivindica o direito de escolher seu parceiro por livre vontade e desejo. A trama é complicada quando Merida, ao procurar uma bruxa muito risível, causa uma estranha transformação em sua mãe. A partir de então, o conflito dá-se não apenas no âmbito do embate entre Mãe e Filha, mas também sobre o par Homem e Natureza. Merida, a partir daí, precisa não apenas reconciliar-se com a mãe, mas – temerosa missão – fazer seu pai reconciliar-se com a Natureza e superar um antigo trauma.

É quase dispensável falar do domínio técnico da Pixar. O esplendor visual de Valente é impecável, e os efeitos em 3D ajudam a narrativa a desenrolar-se com mais complexidade e comicidade – não se constituindo, como se vê frequentemente, tão só o ouro de tolo para impressionar os incautos. No enredo, porém, há uma solução que incomoda, pelo seu gritante simplismo. Chega a ser constrangedor o modo como os roteiristas resolvem o problema desenrolado pelo conflito entre a perspectiva feminista de Merida e o tradicionalismo da comunidade que a rodeia. Nenhuma comunidade de turrões conservadores se dispõe a quebrar os laços seculares tecidos pela tradição com tamanha facilidade!

Valente não macula o alto padrão de qualidade que se associa, com total justiça, ao nome da Pixar Animation. Mas me parece estranho a imersão da companhia no território já tão visitado pelo “inimigo” (no caso, a DreamWorks). Me parece também que, pela primeira vez, a cartilha do politicamente correto, em vez de impulsionar os criadores da Pixar, acabou por limitá-los. Merida pode encantar, pode ser engraçada e divertida, mas poucas pessoas sairão do cinema persuadidas de que ela foi capaz de persuadir guerreiros turrões e tradicionalistas a comprarem valores das democracias liberais. Essa fraqueza talvez tenha se originado do fato de que não se queria fazer de Valente um filme abertamente político, portanto, o humor e as soluções fáceis atenuaram um conflito mais complexo que envolve tanto o embate entre tradição e liberdade quanto os problemas inerentes às relações de gênero. Não digo com isso que a defesa do feminismo e da liberdade de expressão sejam tímidos no filme; digo apenas que as motivações políticas profundas de tais conflitos não foram buscadas. O saldo final, em favor do filme, fica por conta do seu esplendor visual e da comicidade cheia de subentendidos de algumas boas cenas, como a da disputa esportiva entre os pretendentes de Merida. Saldo esse, diga-se de passagem, bastante generoso

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013

Facebook, reduto de mimados? [parte 1]


Um dos grandes problemas do facebook é que a confissão de um problema nele, qualquer que seja, já logo faz pressupor que o confidente é incapaz de lidar com tal problema e está apelando desesperadamente pela ajuda de qualquer um, mesmo que seja o irmão do cunhado do amigo da vizinha. Se este raciocínio fosse verdadeiro, o facebook seria um imenso parque de diversões cheio de crianças mimadas e mofinas em busca de um adulto inexistente. Mas não creio que seja assim; não acredito que toda confissão deva ser um atestado de imaturidade existencial e de incontrolável carência afetiva. Aliás, uma das melhores funções do facebook tem para mim é me ajudar a distinguir os adultos das crianças barbadas.

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013

Psicologia do picareta


Uma marca singular dos picaretas, sejam deístas ou ateus, príncipes ou mendigos, estejam à direita ou à esquerda, é a autoproclamação orgulhosa de uma impossível autonomia do self.  Onde a subjetividade ruge ao vento sua solidão heroica e gloriosa, ali está o picareta. No capitalista que conseguiu tudo com o “suor do próprio trabalho”; no mendigo que berra não depender de ninguém no mundo; no aluno que faz o trabalho em grupo sozinho para se gabar. O picareta desconhece o que vem de graça, pela gratia, ou diriam os não religiosos, pelo acaso. Tudo pra ele é fruto de manobras e cálculos, toda vitória é fruto de uma decisão firme em seu propósito. A crença na autonomia dos nossos desejos e na supremacia da vontade individual gera toda variedade de picaretas – de profetas a estadistas, de intelectuais carreiristas até almas ingênuas que se fiam com constrangedora fé nos manuais de autoajuda mais rasteiros. O picareta não questiona se há algo errado na ordem do mundo (cosmos), na organização social em que habita – ele quer apenas se adaptar e se dar bem. Assim, se a lei está a seu favor, ele a usa com aquela cara-de-pau sutilmente irônica, aquele espírito de isenção de quem diz: “Não posso fazer nada, a lei está a meu lado”. Se a lei não está do seu lado, então é preciso burlá-la sem sujar as mãos. O que significa: subir nas costas de alguém, ou jurar que está defendendo uma causa nobre – Deus, a Família, o futuro do País, o Partido, a Moral, a Boa Educação, a Ciência etc – ou, no limite, dizer que se não fizesse aquilo, outra pessoa o faria, pois “o ser humano é assim mesmo, não adianta se iludir”.

sábado, 9 de fevereiro de 2013

Debater até o fim?


Raramente esgotamos um debate – mesmo os debates saudáveis, com gente civilizada. A covardia (em geral travestida de prudência) e a preguiça costumam agir com mais eficácia. Vejo grandes prejuízos nessa atitude, pois ela impede que organizemos melhor nosso complexo de crença e valores, os argumentos que angariamos na leitura e na vivência cotidiana. Eu mesmo costumo agir assim, e é com o fito de me remediar desse defeito que, nos últimos 2 anos, tenho voltado com frequência à querela de Santo Agostinho com Pelágio. O debate entre Agostinho e Pelágio, para quem o desconhece, gira basicamente em torno do sentido da natureza humana e do papel da graça no plano de salvação do homem. Desconheço uma refutação tão completa, uma contra-argumentação tão paciente, detalhada e meditada como a que Agostinho impõe a Pelágio, sem desmerecer o adversário. Aquela paciência, aquele rigor, aquela absoluta honestidade que não prescinde da dureza – eu sinto a cada dia que tenho que aprender nem que seja mais um pouco daquilo. Por isso talvez eu goste de pensadores tão díspares como Nietzsche e santo Agostinho. Há livro tão felizes (como para mim são os de Agostinho) que nos dão não apenas ideias mas ainda o segredo de como fabricar ideias. 

segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013

Um texto inédito de Borges sobre a criação poética



O texto que segue foi uma conferência dada por Jorge Luis Borges, sobre a criação poética, no prestigiado Collège de France, em 1983. O impulso de traduzi-la me veio pelo único fato de que se trata de um texto esclarecedor e (até onde eu saiba) inédito em português, no entanto alerto: traduzi-o de uma tradução. Explico: Borges o proferiu em francês, Juan Moreno Blanco o traduziu para a revista colombiana Número e eu o traduzi da versão de Moreno Blanco. Infidelidades estilísticas (fora as já esperadas de uma tradução de primeira mão) devem existir, mas asseguro ao leitor, na condição de "borgianista", que não me soam gritantes; fosse uma peça ficcional, não teria tido esta ousadia. É preciso lembrar ao leitor que o estilo do Borges maduro é cristalino, o que ajuda bastante. Aqui, algumas repetições deselegantes devem ser creditadas à forma de exposição oral, e ao fato de que falava um senhor com quase 84 anos de idade. Os pontos suspensivos entre parênteses indicam os momentos incompreensíveis da exposição, às vezes devido à baixa qualidade da gravação, às vezes por titubeio do palestrante. Para os interessados em aprofundar a visão de Borges sobre o assunto, sugiro o belo livrinho Esse Ofício do Verso e o texto “A poesia’, do livro Sete Noites (também no volume III das Obras Completas).
                                    
[Wanderson Lima]

*

Autoridades, Senhoras e Senhores:

Pedem-me que fale sobre a criação poética. (...) A criação poética (…) parte da memória e a memória é feita sobretudo de esquecimento; já que a memória, como disse Bergson, escolhe o que quer ou deve esquecer. Eu escrevi um conto sobre um homem afligido por uma memória infinita, esse conto se chama “Funes o memorioso.”. Felizmente nossa memória não é infinita, um pode esquecer, outro pode inventar. E há ainda outro fato: cada língua é uma tradição, uma tradição literária e poética. Eu não estou seguro de que a palavra “lune”, por exemplo, em latim, em espanhol, em italiano, em português ou em romeno seja a mesma palavra que a palavra “lune” em francês. A palavra “lune” é mais delicada (...), como essa palavra inglesa, bastante demorada, “moon”. 

Todas essas palavras não significam o mesmo, todas essas palavras correspondem a uma literatura anterior, que dizer, se digo “lune” tenho que pensar que essa palavra passou por Verlaine, que a palavra “moon” passou por Shakespeare e que a palavra “luna” passou por Virgílio; assim, cada língua é uma tradição.

Com relação à criação poética, li alguns livros de estética, conheço, por exemplo, meu Aristóteles, meu Benedetto Croce, mas prefiro ler as reflexões dos escritores. Sei que há duas teorias extremas da poesia. A primeira, que seria a segunda no tempo, seria a daquele grande poeta romântico, Edgar Allan Poe, o qual todos devemos alguma coisa, como a Walt Whitman. A teoria de Poe, que ele expressou em sua “Filosofia da Composição”, é que a poesia, a criação poética, é um ato intelectual. Bem, eu estou seguro de que ele se equivoca. Poe tomou seu próprio poema, um poema que foi bastante melhorado por seus tradutores, por Baudelaire, por Mallarmé – “O Corvo” –, um poema bastante medíocre em inglês, e explicou como chegou a esse resultado. Segundo ele, começou pela idéia do refrão; a importância, a força estética do refrão. Então pensou: os dois sons mais agradáveis da língua inglesa são “eer” e “oor”, então chegou, imediatamente, segundo ele, à palavra “nevermore” e depois pensou: é muito estranho que um ser dotado de razão repita continuamente a mesma palavra; assim pensou em um animal, pensou num papagaio, mas enfim... a dignidade poética lhe fazia falta. Ele lia nesse tempo “Barnaby Rudge” de Dickens e aí encontrou um corvo, então o corvo lhe sugeriu o busto de Palas, o busto lhe sugeriu uma biblioteca e seguiu assim, por um sólido raciocínio, até a escritura de seu poema, bastante medíocre, “O Corvo”. Segundo afirma, começou pelo último verso, “Shall be lifted nevermore!”, e depois escreveu o resto para chegar a esse fim, um pouco melancólico, diria eu. Bem... esta teoria da composição poética como um ato intelectual, como uma série de raciocínios e de silogismos é, me parece, de todo insatisfatória.  É estranho que essa idéia clássica seja obra de um grande escritor romântico, como o era sem dúvida Edgar Allan Poe, sobretudo sendo que ele não escrevia versos mas sim maravilhosas fábulas em prosa, por exemplo, “O Relato de Arthur Gordon Pym”.

Temos outra idéia. É a antiga idéia da inspiração. Essa palavra é demasiado grandiosa para mim, mas por que não aceitá-la no transcorrer desta conversa informal? ... E bem, a idéia da inspiração é a idéia do poeta como amanuense, digamos: como alguém que recebe o ditado por uma força desconhecida. Assim, os gregos pensavam nas musas, os hebreus pensavam nos reis, no espírito...  Essa idéia é mais plausível. Pode-se pensar também no que o grande poeta irlandês William Butler Yeates chamava “great memory”, a idéia de que em cada um de nós jaz a memória de nossos ancestrais. Somos infinitos. Assim, o poeta não pode ser reduzido à sua realidade pessoal e, quando escreve, recebe essa grande memória. Poder-se-ia pensar também nos arquétipos platônicos, o que seria o mesmo; quer dizer, um contém o todo e o expressa.

Bem, isso pode aceitar-se ou não. Uma coisa é mais verossímil que a outra. Quisera eu falar de minha vasta experiência, minha modesta experiência. Eu passei... eu consagrei toda a minha vida à literatura. Sempre soube, desde que era uma criança, que meu destino seria literário, quer dizer: eu me via sempre cercado de livros como na biblioteca de meu pai, quem talvez me deu essa idéia. E bem, sabia que passaria toda a minha vida lendo, sonhando e escrevendo, e talvez publicando, mas isso não é importante, não faz parte de um destino literário, mas enfim... eu fiz isso. Fiz o possível, não para ler todos os livros, como dizia Mallarmé, mas, enfim, para ler os livros de que eu gostava.

Tive consciência de que a leitura deve ser considerada não como uma carga, mas como uma fonte de felicidade, possível e fácil. Então vou contar-lhes, já que estamos falando de uma maneira amigável, espero, minhas experiências pessoais. E bem... eu caminho pelas ruas de Buenos Aires, para Biblioteca Nacional, que dirigi há tempos e que deixei depois, e, subitamente, sinto que algo vem a mim. Então espero. Esse algo chega. É talvez uma fábula, uma noção qualquer, que não concebo de forma clara, mas vislumbro sempre o começo e o fim e depois me leva a inventar o que há entre essas duas coisas. Faço o que posso. Depois sinto que essa idéia exige, digamos, um conto, um poema, um ensaio. Isso me é revelado depois...

As teorias podem ser úteis para estimular a poesia. Por exemplo, eu não creio na democracia, trata-se de uma questão estatística para mim. Mas essa idéia fez de Whitman um grande poeta. A idéia da democracia, essa estranha idéia de escrever um livro com um personagem... um triplo personagem, uma sorte de trindade. Pois o Walt Whitman de “Folhas da Relva” é o jornalista Walt Whitman que o escreve; uma imagem bastante elevada de sua própria vida e esta idéia é genial... Quer dizer que cada leitor é um pouco Walt Whitman, Walt Whitman se dirige a ele; quando alguém lê o livro pensa havê-lo escrito de uma certa maneira. E há um fato que quero assinalar, bastante estranho, e é que todo mundo imitou os frutos de Walt Whitman. Todo mundo; por exemplo, Lee Masters, por exemplo, Neruda, por exemplo, Carl Sandburg – talvez seu melhor discípulo americano –, enfim.... todo mundo imitou aquilo a que ele chegou, mas ninguém repetiu essa estranha experiência de um herói que foi três pessoas: o escritor; uma imagem glorificada do escritor e o leitor.  E bem, essa é uma maneira de trabalhar.

Porém, às vezes, meu ponto de partida foi um texto qualquer, já que, entre as experiências humanas, quiçá uma das mais belas, uma que assegura a felicidade de certa maneira, é, como o sabemos todos, a leitura. Ou, como dizia Emerson, outro grande poeta: a poesia nasce da poesia; ou, o que eu disse anteriormente: a poesia nasce da língua, pois cada língua é uma forma de sentir o mundo, cada língua é uma literatura possível, inclusive se não chega a sê-la. E bem, essa é para mim outra maneira da criação poética.

Mas há outra maneira que eu empreguei para meus modestos fins; essa é uma reflexão qualquer. Por exemplo, a palavra “inesquecível”, que eu pensei em inglês, “un-for-get-table”. Bem... comecei com essa palavra. Disse-me: todos os dias empregamos a palavra “inesquecível”... mas se algo fosse continuamente inesquecível, que se passaria? A pessoa não poderia pensar em outra coisa. Se alguma coisa fosse continuamente inesquecível, então essa pessoa se tornaria louca. Esse foi o ponto de partida para uma história que eu escrevi, pode ser que vocês a tenham lido... chama-se “O Zahir”. Trata-se de uma moeda de vinte centavos que é inesquecível. O homem que a vê se torna louco ao cabo de algumas páginas. É um conto bastante curto. Em outra ocasião, parti também de uma reflexão abstrata. Pensei nessa admirável invenção teológica da eternidade. Disse-me: na noção de eternidade se pensa que há um momento, um momento divino evidentemente – não pertence ao homem mas sim à divindade –, há um momento onde se encontram todos os momentos do tempo, quer dizer, em um simples momento da divindade se encontram todo o passado, todo o presente e todo o porvir. E bem, pensei em uma categoria mais modesta que o tempo, o espaço. Alguém pode imaginar, por que não imaginar, que em alguma parte há um ponto onde se encontram todos os pontos do universo, então escrevi uma história que talvez vocês tenham lido, “O Aleph”: eu não sei se é um bom conto ou não, já muita gente o leu e o achou... legível, digamos.

Bem, meu ponto de partida, nesses dois contos, foram essas duas idéias não muito interessantes, não muito novas que eu saiba. E, além disso, há outra coisa: cada vez que escrevi senti a emoção, a emoção de minha vida: eu creio que não se pode escrever sem emoção, sem paixão. A idéia da poesia como jorro de palavras é uma idéia de todo errônea, creio eu, uma idéia falsa. Além disso, quando alguém viveu algo, quando sentiu algo, em um homem de letras isso pede uma forma (...)

Em “A Odisséia” se lê que os deuses dão desgraças aos homens para que as gerações seguintes tenham algo que cantar. Vinte e cinco séculos depois, Mallarmé pensou o mesmo, mas ele pensou em termos de um livro, e disse: “Tout abouti à un livre”. É a mesma idéia, a idéia de que nossas experiências existem para a arte, existem para gerar outras formas de arte. Nesta arte achamos à primeira vista que talvez o infortúnio seja mais nobre que a felicidade, a derrota mais nobre que a vitória. A derrota pode fazermos pensar, enquanto que na vitória se mesclam as interjeições, a vaidade: então o infortúnio é melhor. Certamente todos temos nossa parte de felicidade e de infortúnio: mas a felicidade é um fim em si mesmo e não exige nada enquanto que o infortúnio deve ser transformado em outra coisa. Quer dizer, o infortúnio seria a matéria da arte, ou também a nostalgia, a nostalgia está ligada a uma felicidade perdida, a um paraíso perdido.    

Há um grande poeta na Espanha no presente, o grande poeta Jorge Guillén, que talvez seja o único que canta a felicidade presente. Não a felicidade como o paraíso perdido, mas como se ele estivesse no paraíso. Eu não conheço nenhum outro poeta que tenha feito isso. Whitman faz o possível para cantar a felicidade, mas a gente sente que ele era um homem triste, só, e que sua felicidade é um dever que ele se impôs, que sua felicidade é uma faina, digamos.

Eu comecei, como todos os escritores, sendo barroco. Isso é uma forma de timidez. Comecei sendo surpreendente e genial. No presente sei que não o sou. Eu queria ser Quevedo ou sir Thomas Browne ou Leopoldo Lugones e tantos outros… no presente eu me resigno a ser Borges. Que outra coisa posso fazer? Parece que, como eu, a gente se resigna a isto e eu posso ser Borges sem correr nenhum perigo.

Eu estou muito surpreso de me encontrar aqui com vocês. É uma forma de felicidade à qual eu nunca havia aspirado ou na qual eu nunca havia pensado. Alfonso Reyes me disse uma vez: nós publicamos para não passarmos a vida corrigindo os rascunhos. Isso é verdade. Quando publico um livro o esqueço, o esqueço tranqüilamente. Quando me dizem, e é uma notícia surpreendente para mim, que há bibliotecas inteiras escritas sobre mim... eu não li um único livro... eu continuo pensando no futuro... penso que é doentio pensar no passado, pensar naquilo que se escreveu. No presente, penso em meus livros futuros. Tenho 83 anos, então meu futuro não é verdadeiramente grande, contudo trato de olhar para frente e não para trás, pois isso é doentio. 

Quando eu era jovem era barroco, buscava palavras bem antigas ou trava de forjar palavras: no presente intento interferir o menos possível no que escrevo. Quer dizer, escrevo... deixo a página de lado, a releio ao cabo de algum tempo, suprimo todas as palavras ou frases que possam surpreender ao leitor. Trato de que isso flua e inclusive sou obrigado às vezes a dar essa impressão ainda que eu saiba que isso nunca fluiu, e me ponho a mudar e a corrigir, e a corrigir minha correção, e assim continuamente... Mas eu quero que o leitor, quando leia meus livros (…) os melhores são “O Livro de Areia”, “O Informe de Brodie”, “A Cifra”. São meus melhores livros, se podem esquecer os outros comodamente; eu o fiz. Eu penso que alguém que não leu nada pode começar por “A Cifra”, na poesia, e por “O Livro de Areia”, na prosa.

No presente intento ser o mais simples possível, sendo complexo mas de uma maneira furtiva e modesta, de uma maneira não evidente. Quer dizer, eu não tenho estética, não busco os temas, os temas me buscam, eu tento detê-los mas ao final eles me encontram, então há que escrever para ficar-se tranqüilo (...) Nesse momento eu publico ou não. Em geral o faço para ficar livre dos rascunhos, como dizia Reyes. Mas creio que cada tema tem sua estética.  Cada tema nos diz se ele quer que o escreva em verso, em forma clássica, em verso livre, em prosa ... creio que a estética é dada a cada tema. Há temas que exigem um romance, esses não me visitam, não creio que escreva um romance, li poucos romances, escrevi demasiados contos, talvez, e bastantes poemas também. E, repito-o, intento ser legível. Não penso no leitor, salvo no sentido de que me esforço para que a leitura seja fácil e, se possível, agradável.

Mas talvez tenha falado demais. Talvez a ocasião, as palavras que disse, não são mais que um ponto de partida para as perguntas. Estarei muito contente de responder a suas perguntas. Prometo-lhes uma só coisa: a sinceridade, não posso prometer outra coisa além disso... Enfim, amigos, obrigado.

Jorge Luis Borges/ Trad. Wanderson Lima

sábado, 2 de fevereiro de 2013

4 poemas chineses


PELA MANHÃ, RESPOSTA AO HOMEM VULGAR

Me perguntas por que vivo nas montanhas verdes;
sorrio mas não respondo, meu coração está tranquilo.
Pessegueiros e águas que fluem ficaram para trás há tempos –
tenho outro mundo, não o mundo dos homens.

Li Po (701-762?)



A BORDA DO CÉU

Sol de primavera rente à borda do céu,
à borda do céu o sol se põe.
O rouxinol tagarela como se tivera lágrimas
para molhar a flor mais alta.

Li Shang-yin (813-858)



POEMA

Estou velho, enfermo e só –
e faço minha fogueira na Ladeira Leste.
Branca, falha e hirsuta
minha barba se funde ao vento.
Frequentemente meu filhinho se deleita surpreso
por encontrar rosas em minhas bochechas.
Como poderá saber ele – sorrio –
que se estão rubras é devido ao vinho?

Su T’ung-po (1036-1101)



POEMA

As brisas da primavera varrem os prados verdes,
a chuva cessou, mas das folhas dos bambus ainda cai água.
De repente um pássaro branco aparece em cena,
rompe o Universo verde da ladeira da montanha.

P`o Yü-ch'ien (?/?)

P.S. Versões feitas a partir de traduções do espanhol e do inglês.