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quinta-feira, 23 de agosto de 2012

Transe (2006), de Teresa Villaverde


Por estes dias, uma frase atribuída a Tom Jobim não me sai da cabeça: “O Brasil não é para principiantes”. Não vou aqui explorar a gama de sugestões contidas no dito de Jobim, mas apenas pedi-lo emprestado para falar desta magnífica diretora portuguesa: o cinema de Teresa Villaverde não é para principiantes. Não é, em primeiro lugar, por sua visceralidade difícil de suportar, mesmo por aqueles que estão afeitos à violência estilizada e paródica do cinema americano; em segundo lugar, porque se trata de um cinema vinculado àquela vertente do cinema de autor europeu, com planos lentos e elaborados, pejados de sugestões simbólicas, e estrutura narrativa quebrada. Não, não estou sugerindo que Villaverde apenas mova com competência os clichês típicos do cinema de autor: há nela uma clara busca de novas soluções, na construção narrativa e no posicionamento da câmera, que não redunda somente em rebarba esteticista.

Teresa Villaverde, se não for abuso reduzi-la a uma “escola”, pode ser colocada entre os “discípulos” de Tarkovski, a exemplo de Sokurov e de Béla Tarr (ainda que, admitamos, num patamar um pouco abaixo, por enquanto, destes dois).  Podemos caracterizar esta escola de Tarkovski por um conjunto de traços estilísticos, como o plano-seqüência, o travelling e narrativa não-linear e poética, etc. Mas podemos também caracterizá-la do ponto de vista moral e, resumindo, dizer que tal escola evita a beleza meramente funcional, que não esteja a serviço da busca da verdade e no contraponto ao esvaziamento espiritual de nossa época. Então, em última instância, o cinema de Teresa Villaverde não é para principiantes porque ele exige comprometimento moral do espectador: não dá para ir a um cinema a fim de “curtir” um filme como Transe (2006). Ou até dá (há, afinal, todo tipo de espectador que se possa imaginar: uma pessoa me disse que assistiu 9 vezes ao Tio Boonmee do Apichatpong, enquanto a maioria não o suporta por 20 minutos), mas não foi para esse fim que o filme foi pensado.

Transe conta a história de Sónia, uma russa que, cansada do seu país e dominada por uma angústia intensa, resolver ganhar a vida na Europa, numa trajetória que se inicia na Alemanha e desemboca em Portugal. Teresa Villaverde constrói uma história bifurcada a que cai muito bem o nome “transe”, vocábulo que tanto pode indicar momento difícil, crise, como sugere um estado inconsciente do sujeito, hipnotizado ou dominado por forças desconhecidas. Transe é construído com a pretensão de ser, ao mesmo tempo, um filme-denúncia (mostrando uma poderosa rede de prostituição de emigrantes envolvendo a comunidade européia) e um filme sobre os subterrâneos da mente, com ressonâncias metafísicas. Quer mostrar um transe-crise e um transe-hipnose.

Tão alta pretensão tem seu preço: a sensação de falta de urdidura. Transe é, ao mesmo tempo, um filme meticulosamente pensado e um filme mal costurado. Não faltou competência artesanal à autora, mas o salto do social ao simbólico-metafísico custou-lhe caro. Se, de saída, ela aceitasse a descostura como um dado estético, tudo bem. Mas não: senta-se em Teresa Villaverde, desde o começo, o esmero da elaboração prévia, a tentativa de controle total da encenação, a antipatia com o acaso. Há cenas isoladas em Transe que, sem sombra de dúvida, estão entre as mais belas e elaboradas que se fez no cinema pelo menos nos últimos dez anos. Mas o conjunto atinge o paradoxo de ser ao mesmo tempo bem elaborado e mal urdindo (refiro-me à harmonização dos planos real e onírico). A impressão que tenho, vendo Transe, é que real e símbolo se sobrepõem ali sem construir uma síntese.

Como crítico, costumo falar do que o filme é, não do que poderia ser. Mas desta vez não resisto: penso que se Teresa Villaverde fosse menos geômetra, se ela não se aferrasse tanto à tese de que sua protagonista deveria ilustrar a emigrante que desce, contra a vontade, ao último degrau da dignidade humana, ela teria feito uma absoluta, incontestável obra-prima. Por exemplo: para que o mau gosto da cena de zoofilia se não para comprovar que Sónia chegou ao cume da degradação? O filme pedia a cena ou a diretora queria coroar sua tese?

Duas observações finais. A atriz que protagonizou o filme (a portuguesa Ana Moreira) é simplesmente um monstro de talento e coragem. Arrisco a previsão de que Teresa Villaverde vai chegar à obra-prima, cedo ou tarde. Guardem este nome: Teresa Villaverde.  


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