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segunda-feira, 24 de setembro de 2012

Nota sobre A FICÇÃO E O POEMA, de Luiz Costa Lima




Em A ficção e o poema, lançado em agosto de 2012, Luiz Costa Lima dá prosseguimento à sua indagação da mímesis iniciada em Mímesis e modernidade, de 1980, e retomada em livros como Vida e mímesis (1995) e Mímesis: desafio ao pensamento (2000). A reconsideração daquele conceito tem levado Costa Lima, ao longo de mais de três décadas, a reelaborar categorias básicas do pensamento – não apenas estético, diga-se de passagem – do Ocidente, engendrando noções conceituais e hipóteses importantes como as de mímesis da representação e mímesis da produção, controle do imaginário, sujeito fraturado, representação-efeito e agora, neste novo livro, o conceito de mímesis-zero, inicialmente sugerido ao autor por duas colaboradoras, Aline Magalhães Pinto e Laíse Araújo.

A ficção e o poema é composto por um preâmbulo – em que o autor, apoiado em Kant, Freud e René Girard desenvolve a noção de mímesis-zero – e três partes de maior fôlego, relativamente independentes entre si. O que vem a ser a mímesis-zero? Costa Lima, ao fim do preâmbulo, após passar pelas contribuições do trio há pouco citado, resume a questão: “Mímesis-zero equivale a dizer que não contém figuras ou linhas de força configuradas. Ela é um como se, isto é, algo que, em estado de gestação, se for plenamente diante, será um objeto ficcional. Mímesis sem movimento porque mera potencialidade. Enquanto potencialidade, ela é uma mancha ou nebulosa tocada pela libido. A junção entre mancha psíquica e libido significa que algo ou alguém, uma paisagem ou quem a atravessou, ali deixou uma marca que, por enquanto, provoca tão só uma impressão, no entanto duradoura” (p. 26). Infelizmente, o potencial que a mímesis-zero abriga tende antes a se dissipar do que a se condensar em obra – isso porque à sociedade interessa mais que a tradição se confunda com um depósito de estereótipos, pois assim seus membros se tornam mais ordeiros e menos questionadores. A sensação de insuficiência de teorização da mímesis-zero é notória, mas como sabemos que cada livro de Costa Lima, pelo menos desde Mímesis e modernidade, retoma e aprofunda o seguinte, é quase certo que o autor retomará o problema.

Na parte I, Costa Lima se debate com Adorno e Derrida – naquele o autor brasileiro vislumbra uma proposta estética autoritária e com ressaibos teológicos que, ao exasperar o confronto da arte autônoma com a sociedade, acaba por tornar-se o reverso de uma teoria mimética da arte, ainda que o alemão tenha se ocupado com a mímesis; no pensador francês Costa Lima aponta, após um estudo cerrado de ensaios seminais como “La double séance” e “La mythologie blanche”, o equívoco de conceber a mímesis como o avatar da metafísica da presença. Contra o antirrepresentacionalismo de Derrida e a negatividade estética de Adorno com sua absoluta autonomização da arte, Costa Lima propõe, como vem fazendo desde Mímesis: desafio ao pensamento, que se tome a representação não como uma imagem fiel de algo prévio que se forma em um sujeito passivo, mas como o efeito da interação entre as propriedades de um objeto ou uma cena com as propriedades do sujeito (daí o uso, por parte do autor, do termo representação-efeito). Ora, essa noção de representação-efeito, que Costa Lima deve muito a Wolfgang Iser, como ele mesmo reconhece, afasta a mímesis da “metafísica da presença” (Derrida) sem que seja preciso admitir, como faz o filósofo francês, que o texto literário é uma deriva sem pouso, um eterno adiamento do encontro entre signo e referente.  

A parte II versa essencialmente sobre a questão da poesia em Heidegger; aqui Costa Lima demonstra que o discurso do filósofo acerca da poesia é menos demonstrativo que persuasivo (basta observar-se a linguagem nitidamente epifânica – quase uma “retórica sacra” – do pensador alemão). Assim, por exemplo, a postulação heideggeriana de que a poesia instala para o homem a morada de seu ser é nada menos que uma arbritariedade cujo pano de fundo é a entronização do poeta, do pensador e do chefe de Estado (criadores por excelência), reduzindo as demais criaturas – técnicos, cientistas, o homem cotidiano – à condição de instrumentos para aqueles. Deve-se, ainda, ao menos sob um ponto, desconfiar-se da entronização do poeta levada a cabo pelo pensador germânico: ainda que reconheça na poesia a dignidade reflexiva, Heidegger acaba fazendo com que suas análises de poetas, especialmente de Hölderlin, seja tão só a corroboração do pensamento ... de Heidegger. Costa Lima não hesita em afirmar que “a poética proposta por Heidegger não se limitava a exaltar seus próprios filosofemas, senão que convertia a arte em porta-voz de uma Alemanha por ele mesmo privilegiada” (p. 154). Daí que o brasileiro corrobore a asserção de Lacoue-Labarthe de que a poética de Heidegger constitui, na verdade, um “nacional-esteticismo”.

Na parte III, Costa Lima busca concretizar suas teorizações a partir da análise da obra poética de quatro autores: Antonio Machado, W. H. Auden, Paul Celan e Sebastião Uchoa Leite. O ponto alto dessas análises é, sem dúvida, a parte dedicada a Celan, onde a reflexão sobre assuntos controversos como a relação entre ficção e poema, ou questão da metáfora, ou as relações entre poesia e biografia atinge píncaros de agudeza e complexidade.  

Luiz Costa Lima nasceu em São Luís do Maranhão, em 1937, tendo sido levado ainda muito jovem para Recife. É professor emérito da PUC-RJ. Recebeu da Alexander von Humboldt-Stiftung (Alemanha), em 2004, o prêmio de pesquisador estrangeiro do ano, na área de Humanidades. Em 2011, a Universidade de Queensland (Austrália) realizou o colóquio “Mimesis and culture”, dedicado à sua obra. 

quinta-feira, 20 de setembro de 2012

A MAÇÃ (IRÃ,1998), DE SAMIRA MAKHMALBAF


[Reproduzo aqui este texto de 2010 em homenagem àqueles que tem acompanhado a Mostra de Cinema Iraniano na Casa da Cultura]


Samira Makhmalbaf dirigiu o filme “A maçã” (Sib, 1998, Irã / França) quando tinha apenas 17 anos, sendo a mais jovem cineasta até hoje a concorrer a prêmio no Festival de Cannes. Dois anos depois, com “O Quadro Negro” (Takhté Siah), ela ganharia o Prêmio Especial do Júri daquele festival francês, tendo o seu nome definitivamente ganho projeção mundial.

“A maçã” narra a história verídica de duas irmãs, Massoumeh e Zahra, trancafiadas em casa pelos pais - uma senhora cega e um senhor desempregado - durante 11 anos, o que as levou a um processo de retardo mental. A prisão domiciliar era justificada por uma passagem de um texto religioso segundo o qual as jovens são como pétalas, que fenecem ao contato do sol. No filme, acompanhamos o drama dos pais (do pai, principalmente) para não ver as filhas ficarem sob a tutela do Estado. Ele tentará ensinar as meninas a desenvolver habilidades essenciais, como varrer o terreiro e fazer comida, para provar a uma assistente social que elas devem ficar com a família. O instigante é que não só a história das irmãs é verídica como os envolvidos no drama representam a si mesmos no filme. O pai, por exemplo, aceitou representar a si mesmo por acreditar que, assim, poderia defender seu nome, que fora, em sua opinião, caluniado pela imprensa, quando o caso veio à tona. É a própria Samira que diz, numa entrevista concedida no Brasil: “Começamos a fazer o filme apenas quatro dias depois que toda a imprensa abriu espaço para a história. Isso significa que o que foi captado, nesse curto período de tempo, era o real, ou as conseqüências sociais e psicológicas do acontecido”.

Esse esfacelamento das fronteiras entre ficção e documentário, que leva ao hibridismo das imagens, ora em um registro bruto, ora com um zelo pictórico incomum, é nítida influência, na jovem cineasta, de Mohsen Makhmalbaf, que é seu pai e assinou o roteiro do filme, e de Abbas Kiarostami. Há um conjunto de filmes feitos no Irã que, valendo-se desse hibridismo, se refestela na reedição do neo-realismo italiano, apresentando histórias filmadas com amadores, denúncia social, mensagens humanistas, preferência pelo plano-seqüência e uma insistência em mostrar, nem sempre por necessidades estéticas, a beleza das paisagens iranianas em planos gerais de tirar o fôlego. É a vertente que nos deu, por exemplo, o Majid Majidi de “A cor do paraíso”, o Bhaman Ghobadi de “Tempos de embebedar cavalos” e o Mohsen Makhmalbaf de “Caminho de Kandahar”. São filmes belos, minimalistas, movidos pela crença implícita de uma transparência simbólica da representação cinematográfica, a decantada idéia do cinema como a arte realista por excelência, como defendia André Bazin. A adesão de Samira a um realismo de imagens híbridas vai além desse realismo, digamos, convencional: passa por uma crítica da auto-evidência da imagem e por um questionamento radical sobre o papel do cinema e os limites entre o ator e a pessoa real. Ou seja, “A maçã” deriva do grande Abbas Kiarostami de “Close-up” (1990) e do Mohsen Makhmalbaf de “Um instante de inocência” (1996).

À primeira vista, “A maçã” pode chocar, porque Samira é avessa a ornamentos e melodrama. Sente-se, durante toda a história, que a diretora, mesmo tratando de uma situação dolorosa e aberrante, não nos quer fazer chorar. A precisão e a lentidão da fotografia convidam à reflexão, à apreciação racional. Samira vale-se do distanciamento, evitando que façamos julgamentos emotivos ou unilaterais. Trata-se de um filme polifônico, no sentido bakhtiniano do termo: ali estão presentes a ótica da família, a da vizinhança e a do Estado, na figura da assistente social. A diretora penetra nos dramas humanos evitando simplificações: não há um culpado, há culpados. Fica sugerido que é a própria estrutura do país - seu modelo de educação, sua moral, seu machismo - que produz as condições que geram casos aberrantes, como o que é analisado no filme.

A primeira cena do filme apresenta bem o estilo da diretora: vemos uma mão que tenta, com dificuldade, regar uma plantinha. Há um impedimento, a mão peleja, mas só uma parte da água cai no vazo. Mais adiante, saberemos que o impedimento fora oriundo de problemas de coordenação motora, já que Massoumeh e Zahra não foram socializadas na idade certa. As irmãs serão como essa tênue planta, e só poderão ser “regadas” quando a mão da coletividade agir. Isto se confirma na cena seguinte, que apresenta os pais das irmãs, significativamente, de costas: deles, talvez, elas não possam esperar serem “regadas”. A seguir, vemos um documento, um abaixo-assinado, em que os vizinhos denunciam a situação de Massoumeh e Zahra às autoridades. A última assinatura é justamente de Samira Makhmalbaf que, assim, assina sua responsabilidade não só na/pela ficção, mas na ação social prática.

Assim como a planta da cena inicial, outros símbolos irrompem, ora mais ora menos explícitos, no decorrer do filme. Diríamos que o simbolismo ostensivo é um único e eficaz oásis na aridez do estilo de Samira. Um desses símbolos, a maçã, dá unidade ao filme e, com justiça, serve de título. A maçã aqui não está associada ao pecado, mas à redenção: é com a maçã (e mais tarde com o espelho) que a assistente social declara seu cuidado com Massoumeh e Zahra; é quando as irmãs vão, sozinhas, ao mercado comprar maçãs que fica provado: elas são sociáveis e capazes; com maçãs elas conquistam e celebram suas primeiras amizades; e como era de se esperar, é a maçã que estabelece o dilema no fim do filme e redime a diretora de subjetivismo tendencioso e frieza no desfecho. A personagem que encara a “maçã-dilema” no final é a mãe de Massoumeh e Zahra. Embora apareça pouco na história, ela é talvez a personagem mais intrigante e mais difícil de ser julgada unilateralmente. Ao mesmo tempo vítima e algoz, através dela a diretora retrata os dilemas da mulher iraniana, cerceada pela violência simbólica da tradição religiosa. Ela é cega e, como se não bastasse, anda sempre com o rosto encoberto. Diríamos que ela é duplamente cega: por uma causa natural e por outra cultural. O trauma que ela causa às meninas não é por maldade, e sim por ignorância. Pensa ela, fundada em preceitos morais e religiosos, estar fazendo o bem.

A sensação geral que o espectador tem dessa mãe no decorrer do filme não poderia deixar de ser de ojeriza, já que, mesmo sem más intenções, ela arruinou a existência das crianças. No entanto, Samira busca mediar, em suas operações formais, um julgamento menos preconceituoso a respeito dessa mulher. Neste sentido, a cena final do filme é exemplar, e merece um comentário.

O pai, depois da lição severa da assistente social, deixando-o trancafiado em casa para ele sentir na pele o desconforto da reclusão, sai com Massoumeh, Zahra e mais duas crianças a fim de comprar relógios para as filhas em um camelô. Ele avisa à esposa da saída, mas esta parece não ter escutado. Começa a chamar pelas filhas e o marido e termina por sair, tateando, de casa. Na rua, sob um pequeno prédio, é vítima da brincadeira de um menino traquinas, que do segundo andar faz uma maçã amarrada a um barbante voltear sobre a anciã cega. A poesia que emana dessa cena ganha força não só pelo simbolismo da maçã, recorrente em todo o filme, mas pelo modo insólito que a fruta aparece. Temos o enquadramento de uma deficiente visual resmungando enquanto em seu derredor “flutua” uma maçã, isto é, uma possibilidade de imersão na vida sem o ascetismo da moral pessimista que impregna a religião de Alá. O fotograma congela e o filme termina no exato momento em que a mãe de Massoumeh e Zahra consegue pegar a maçã.

Terá ela mordido a fruta? Terá ela, assim, imergido numa vida mais livre, mais saborosa? São respostas imprevisíveis e mesmo inúteis à economia formal do filme – e acerta a diretora em deixar este ponto em aberto, obrigando o espectador a co-participar reflexivamente da criação. Mas a lição de ética e de arte que Samira Makhmalbaf nos acaba de ofertar decerto irá reverberar em nossa consciência e nossa sensibilidade.

segunda-feira, 17 de setembro de 2012

“Deus vos livre, leitores, de tropeçar com um literato”


Miguel de Unamuno disse: “Deus vos livre, leitores, de tropeçar com um literato. Com um genuíno literato, com um profissional das letras, com um ebanista de prosa envernizada. É uma das piores desgraças que nos pode acontecer”. E antes de Unamuno, Nietzsche já dizia que quem quer se um escritor de relevo deve antes se envergonhar de ser um homem de letras.

De fato, o escritor (refiro-me especialmente ao tipo literato) é não raro um ser repugnante: egocêntrico, mimado, incapaz de ouvir, irritantemente autocentrado, cheio de manias ridículas. Nas conversas corriqueiras, literatos costumam sustentar opiniões absurdas, frágeis a qualquer argumentação séria, para se sobressaírem perante as “pessoas comuns”, que supostamente só pensam o óbvio. A tuberculose matou muitos; a AIDS tirou a vida de alguns; mas a síndrome romântica do gênio incompreendido foi a praga que mais destruiu literatos nos últimos séculos. O desejo de ser diferente ou de dizer diferente para parecer especial leva facilmente o sujeito a tornar-se un ebanista de prosa barnizada.

Para alguns, o remédio é o magistério. De fato, o ensino ajuda a equilibrar as inclinações egocêntricas do escritor, dando a ele certo bom senso. Mas até entre escritores-professores há os incuráveis; quem em sua vida estudantil não tropeçou com um desses sujeitos que pensam ser a matéria central das aulas a vida deles próprios?

Nada é mais entediante do que o gênio auto-proclamado.


segunda-feira, 10 de setembro de 2012

Cinema como terapia?


BALIZAS

“O homem ambicioso ainda está entre nós, como sempre esteve, mas agora necessita de um tipo de iniciativa mais sutil, uma capacidade mais profunda de manipular a democracia das emoções, se é para conservar e expandir com sucesso sua identidade individual” (Philip Rieff).
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“O ‘triunfo da terapêutica’ [...] pode ser uma abdicação da autonomia, em que o declínio dos padrões tradicionais, associado à fé na técnica, leva as pessoas a deixar de confiar em seus próprios instintos a respeito de felicidade, realização e criação de filhos. Então as ‘profissões da ajuda’ tomam conta de sua vida, um processo descrito por Foucault, mas talvez não adequadamente explicado por ele” (Charles Taylor).
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“O triunfo da mentalidade terapêutica... que insistia em ver as questões imemoráveis da vida humana como problemas que demandam soluções. A cultura terapêutica forneceu ambos em abundância: os terapeutas transformaram os antiqüíssimos dilemas humanos em problemas psicológicos e afirmaram que eles (os terapeutas) eram os únicos que conheciam o tratamento” (Charles J. Sykes).


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UMA HIPÓTESE

Quanto mais terapêutico for um filme – quando mais ele servir para obstar o amadurecimento e a busca honesta pela verdade em prol de pílulas positivas de conforto – pior ele será. Pior especialmente no sentido ético, mas também no sentido estético, já que explorará todos os clichês da “representação clássica” (Bordwell) a fim de extrair dela seu principal e mais pernicioso dom: manipular às cegas os sentimentos do espectador.


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ALGUMAS ILAÇÕES

“Pode assistir a este filme, eu estava meio pra baixo e ele me ajudou bastante”, ela me disse. Saquei na hora que jamais devo assistir àquele filme.
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Do ponto de vista moral, À procura da felicidade, protagonizado pelo estrelão Will Smith, é o filme mais pernicioso da história do cinema. Do mesmo ponto de vista, Um instante de inocência, de Mohsen Makhmalbaf é um dos melhores, talvez O melhor.
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A ânsia terapêutica estraga rigorosamente todos os filmes de Spielberg, mesmo os mais bem realizados.
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Quando um pedagogo ou um psicólogo lhe disser que na próxima aula trará um filme, é bom que você falte à aula. O risco de o filme ser meramente terapêutico é grande; e mesmo se for um bom filme, o comentário provavelmente o estragará.
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Fulano tem um problema. Indicaram-lhe um filme que supostamente iria ajudá-lo. Ele acatou a sugestão, que não lhe serviu em nada, e ainda o fez descobrir que boa parte dos filmes são feitos exatamente para tripudiar dos sentimentos alheios, banalizando-os com malícia.
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Todo filme “terapêutico” é pernicioso e mal realizado? Penso que não. Frank Capra cativa pela ingenuidade e Majid Majidi porque troca os adultos pelas crianças e a terapia moderna pela fé. A felicidade não se compra, de Capra, e Filhos do paraíso, de Majidi, provam que existem filmes terapêuticos honestos, ainda que raros.
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Uma coisa são os filmes terapêuticos (Meu adorável professor, Patch Adams, À procura da felicidade etc), outra a “terapeutização” dos filmes. Em mãos incautas, até Glauber Rocha pode virar objeto terapêutico.
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O consumidor de filmes terapêuticos e produtos similares – livros de auto-ajuda, palestras motivacionais, ficção de misticismo barato – adia uma tomada de consciência de sua real situação consumindo cada vez mais estas ninharias.
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Muito mais que as religiões, o consumo de filmes terapêuticos e produtos similares fomentam uma cultura da culpa. Eles ensinam que a felicidade é uma questão de mera opção, sem nenhuma relação como fatores de ordem social, por exemplo. Então, se você é infeliz, dizem eles, a culpa é exclusivamente sua.
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Quem assiste a um filme para aprender – abstraindo questões de ordem estética etc em prol de se deleitar com “grandes lições” – acaba não aprendendo nada. Isto vale para as outras artes também.
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O tipo de filme terapêutico que, neste momento, triunfa no Brasil são os “filmes espíritas”. Neles, o foco é mais propriamente na fraternidade e na caridade do que naquilo que o corpo doutrinário kardecista tem de inovador. Por isso, quase não há polêmica religiosa em torno desses filmes. Não acho impossível, porém, que se erga em nosso país uma indústria de “filmes evangélicos”, de vertente neopentecostal, com sua usual agressividade doutrinária. Isto abalaria, em alguma medida, nosso quadro cultural. Me espanta o fato de os evangélicos, que já comandam um naco significativo da indústria fonográfica e das redes televisivas, não terem metido ainda a cara na empreitada cinematográfica, pois o cinema é talvez a expressão artística de maior poder de persuasão.

sábado, 8 de setembro de 2012

Borges traduzido: "A noite em que no Sul o velaram"


A NOITE EM QUE NO SUL O VELARAM

Jorge Luis Borges [Trad. Wanderson Lima]



Pela descida de alguém
– mistério cujo vacante nome possuo e cuja realidade não abarcamos –
até a aurora há uma casa aberta no Sul,
uma ignorada casa que não estou destinado a rever,
mas que me espera esta noite
com desvelada luz nas altas horas do sono,
carcomida por noites más, distinta,
minuciosa de realidade.

Para sua vigília gravitando em morte caminho
por ruas elementares como lembranças,
pelo tempo abundante de noite,
sem mais vida audível
que os folgados do bairro junto ao armazém apagado
e algum assovio solitário no mundo.

Lento o andar, na posse da espera,
chego à quadra e à casa e à sincera porta que busco
e me recebem homens constrangidos à gravidade
que viveram nos anos de meus antepassados,
e nivelamos destinos no aposento provido que mira o pátio
– pátio que está sob o poder e na integridade da noite –
e dizemos, porque a realidade é maior, coisas indiferentes
e somos apáticos e argentinos no espelho
e o mate compartilhado mede horas vãs.

Comovem-me as pequenas sabedorias
que em todo falecimento se perdem
– hábito de alguns livros, de uma chave, de um corpo entre outros.
Eu sei que todo privilégio, ainda que obscuro, é da linhagem do milagre
e é muito o de participar nesta vigília,
reunido ao redor do que não se sabe: do Morto,
reunida para acompanhar e guardar sua primeira noite na morte.

(O velório gasta os rostos;
nossos olhos estão morrendo no alto como Jesus).
E o morto, o incrível?
Sua realidade está sob as flores diferentes dele
e sua mortal hospitalidade nos dará
uma lembrança mais para o tempo
e sentenciosas ruas do Sul para merecê-las lentamente
e brisa obscura sobre a fronte que se volta
e a noite que da maior aflição nos livra:
a prolixidade do real.

(In: Cuarderno San Martin. Obras Completas. Buenos Aires: Emecé, 1974, p. 88-89)



terça-feira, 4 de setembro de 2012

Moolaadé (Moolaadé, 2004), Ousmane Sembene



O senegalês Ousmane Sembene, falecido em 2007, já foi comparado algumas vezes com Glauber Rocha. De fato, ambos propõem a produção de uma arte política mediada por requintes experimentais e conflitos ideológicos dilacerantes, esquivando-se da miséria (em todos os sentidos, especialmente o estético) que é a arte didática. Mas enquanto Rocha é épico desde o ponto de partida, logrando uma representação cósmica dos conflitos humanos que abarca do político ao metafísico, Sembene, neste Moolaadé (2004), vale-se de outra estratégia: começa com os pés no chão, como quem fosse apenas contar a narrativa de uma mulher birrenta e, aos poucos, vai fazendo sua história crescer até adquirir dimensões épicas. Tecnicamente falando, a maneira como Sembene conduz este crescimento é quase irrepreensível. Impressiona como ele encontra símbolos e duplos na paisagem africana sem, aparentemente, precisar forçar a barra.

A história de Moolaadé situa-se num vilarejo africano afastado de qualquer cidade grande, num lugar onde prevalece o costume da “purificação” feminina, isto é, a tradição da excisão clitoriana como rito de passagem. Collé, a birrenta, é a única mulher deste vilarejo que não permitiu que sua filha fosse mutilada. Para tanto, invocou os poderes da “moolaadé”, algo como uma deprecação mágica que só pode ser quebrada por quem a invocou. Isto tem um alto preço: sua filha vira uma “bilakoro” (mulher impura) e pode por isso perder um casamento promissor; seu marido também fica desmoralizado perante a comunidade, e recebe por isso pressões quase insuportáveis do irmão mais velho. O conflito irá aumentar quando quatro meninas lhe pedem também a proteção de uma “moolaadé” com o fim de fugir à excisão e Collé, em atitude desafiadora, aceita o papel de protetora. Pronto, está armado o conflito que desembocará numa litigiosa reconsideração de valores culturais.

O conflito se intensificará quando duas mentes masculinas esclarecidas, alimentadas pelo manjar iluminista da cultura francesa, entrarem no conflito: o filho do líder da vila e o ambíguo comerciante (misto de usurário, conquistador barato e humanista) apelidado de “Mercenário”. Eles são, por assim dizer, a consciência superior daquele cosmo, já que adquiriram a capacidade de olhar aqueles valores culturais numa perspectiva distanciada. São, em certo sentido, alter-egos do diretor. O que diminui, a meu ver, a força da “epopéia” de Sembene é sua inclinação, ainda que ambígua, ao discurso dos “iluministas”. Fica a impressão, demasiado forte, de um cinema de tese. E pior: como se trata de uma tese iluminada pelo ideário iluminista, a fé religiosa e as forças míticas tendem a se transfigurar em trevas, atraso, ignorância.

Claro, Sembene não se rende inteiramente ao credo iluminista, tanto que foi a “moolaadé”, isto é, uma força mítico-religiosa que desencadeou uma suposta consciência revolucionária. Mas a invocação parece ser – e espero que neste ponto eu esteja enganado, e tenha visto o filme de forma apressada – apenas uma tímida fagulha que vai ajudar as mulheres e alguns poucos homens (três, na verdade) a acenderem a luz da Razão. Ou seja: o senso épico do seganalês está sempre correndo o risco de ser dissolvido pela suposição da superioridade da ratio ilustrada, cujas premissas conduzem à redução de uma prática religiosa incomum à norma européia a mero ato de violência. Trocando em miúdos, ora o filme aponta para o épico, ora para o libelo protofeminista eurocêntrico. A questão é mesmo muito delicada e certamente existem antropólogos, religiosos e juristas infinitamente mais competentes do que eu para julgar, cada um do seu ângulo de atuação, os dilemas morais, políticos, jurídicos e culturais que envolvem a excisão ritual. Obviamente, nas condições culturais em que vivemos, a excisão é uma brutalidade, e só. Mas, e se eu tivesse me criado naquela pequena comunidade no meio da África? Provavelmente, estaria imerso na “episteme” (Foucault) deles, e assim veria a excisão com outros olhos. Ora, aqui é que reside o “X” da questão: Sambene é um senegalês que viveu parte da vida na França, e inegavelmente a formação de sua consciência carrega um dualismo dilacerante. Sem banalizar a gravidade da questão, isto explica muito as oscilações do diretor.

Na última cena do filme, a câmera deixa de enquadrar o ovo que repousava num cume da Mesquita situada na vila para concentrar-se numa antena de TV. Ou seja: as trevas da religião deram lugar às imagens do progresso devorador dos costumes arcaicos. Poderia ser mais agressiva a anunciação do nome dos vitoriosos? Glauber Rocha, o homem que realizou “O dragão da maldade contra o santo guerreiro”, deve ter, nesta hora, se remexido no túmulo.

CINEMA DE MASSA E CINEMA DE AUTOR SOB O ÂNGULO DA AUTORIA

Eis o título de um artigo meu, publicado na revista e-Com. Faz tempo que o escrevi, não concordo com tudo dito ali; mas penso que vale a leitura e por isso o indico: 


http://revistas2.unibh.br/index.php/ecom/article/view/514