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segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013

Um texto inédito de Borges sobre a criação poética



O texto que segue foi uma conferência dada por Jorge Luis Borges, sobre a criação poética, no prestigiado Collège de France, em 1983. O impulso de traduzi-la me veio pelo único fato de que se trata de um texto esclarecedor e (até onde eu saiba) inédito em português, no entanto alerto: traduzi-o de uma tradução. Explico: Borges o proferiu em francês, Juan Moreno Blanco o traduziu para a revista colombiana Número e eu o traduzi da versão de Moreno Blanco. Infidelidades estilísticas (fora as já esperadas de uma tradução de primeira mão) devem existir, mas asseguro ao leitor, na condição de "borgianista", que não me soam gritantes; fosse uma peça ficcional, não teria tido esta ousadia. É preciso lembrar ao leitor que o estilo do Borges maduro é cristalino, o que ajuda bastante. Aqui, algumas repetições deselegantes devem ser creditadas à forma de exposição oral, e ao fato de que falava um senhor com quase 84 anos de idade. Os pontos suspensivos entre parênteses indicam os momentos incompreensíveis da exposição, às vezes devido à baixa qualidade da gravação, às vezes por titubeio do palestrante. Para os interessados em aprofundar a visão de Borges sobre o assunto, sugiro o belo livrinho Esse Ofício do Verso e o texto “A poesia’, do livro Sete Noites (também no volume III das Obras Completas).
                                    
[Wanderson Lima]

*

Autoridades, Senhoras e Senhores:

Pedem-me que fale sobre a criação poética. (...) A criação poética (…) parte da memória e a memória é feita sobretudo de esquecimento; já que a memória, como disse Bergson, escolhe o que quer ou deve esquecer. Eu escrevi um conto sobre um homem afligido por uma memória infinita, esse conto se chama “Funes o memorioso.”. Felizmente nossa memória não é infinita, um pode esquecer, outro pode inventar. E há ainda outro fato: cada língua é uma tradição, uma tradição literária e poética. Eu não estou seguro de que a palavra “lune”, por exemplo, em latim, em espanhol, em italiano, em português ou em romeno seja a mesma palavra que a palavra “lune” em francês. A palavra “lune” é mais delicada (...), como essa palavra inglesa, bastante demorada, “moon”. 

Todas essas palavras não significam o mesmo, todas essas palavras correspondem a uma literatura anterior, que dizer, se digo “lune” tenho que pensar que essa palavra passou por Verlaine, que a palavra “moon” passou por Shakespeare e que a palavra “luna” passou por Virgílio; assim, cada língua é uma tradição.

Com relação à criação poética, li alguns livros de estética, conheço, por exemplo, meu Aristóteles, meu Benedetto Croce, mas prefiro ler as reflexões dos escritores. Sei que há duas teorias extremas da poesia. A primeira, que seria a segunda no tempo, seria a daquele grande poeta romântico, Edgar Allan Poe, o qual todos devemos alguma coisa, como a Walt Whitman. A teoria de Poe, que ele expressou em sua “Filosofia da Composição”, é que a poesia, a criação poética, é um ato intelectual. Bem, eu estou seguro de que ele se equivoca. Poe tomou seu próprio poema, um poema que foi bastante melhorado por seus tradutores, por Baudelaire, por Mallarmé – “O Corvo” –, um poema bastante medíocre em inglês, e explicou como chegou a esse resultado. Segundo ele, começou pela idéia do refrão; a importância, a força estética do refrão. Então pensou: os dois sons mais agradáveis da língua inglesa são “eer” e “oor”, então chegou, imediatamente, segundo ele, à palavra “nevermore” e depois pensou: é muito estranho que um ser dotado de razão repita continuamente a mesma palavra; assim pensou em um animal, pensou num papagaio, mas enfim... a dignidade poética lhe fazia falta. Ele lia nesse tempo “Barnaby Rudge” de Dickens e aí encontrou um corvo, então o corvo lhe sugeriu o busto de Palas, o busto lhe sugeriu uma biblioteca e seguiu assim, por um sólido raciocínio, até a escritura de seu poema, bastante medíocre, “O Corvo”. Segundo afirma, começou pelo último verso, “Shall be lifted nevermore!”, e depois escreveu o resto para chegar a esse fim, um pouco melancólico, diria eu. Bem... esta teoria da composição poética como um ato intelectual, como uma série de raciocínios e de silogismos é, me parece, de todo insatisfatória.  É estranho que essa idéia clássica seja obra de um grande escritor romântico, como o era sem dúvida Edgar Allan Poe, sobretudo sendo que ele não escrevia versos mas sim maravilhosas fábulas em prosa, por exemplo, “O Relato de Arthur Gordon Pym”.

Temos outra idéia. É a antiga idéia da inspiração. Essa palavra é demasiado grandiosa para mim, mas por que não aceitá-la no transcorrer desta conversa informal? ... E bem, a idéia da inspiração é a idéia do poeta como amanuense, digamos: como alguém que recebe o ditado por uma força desconhecida. Assim, os gregos pensavam nas musas, os hebreus pensavam nos reis, no espírito...  Essa idéia é mais plausível. Pode-se pensar também no que o grande poeta irlandês William Butler Yeates chamava “great memory”, a idéia de que em cada um de nós jaz a memória de nossos ancestrais. Somos infinitos. Assim, o poeta não pode ser reduzido à sua realidade pessoal e, quando escreve, recebe essa grande memória. Poder-se-ia pensar também nos arquétipos platônicos, o que seria o mesmo; quer dizer, um contém o todo e o expressa.

Bem, isso pode aceitar-se ou não. Uma coisa é mais verossímil que a outra. Quisera eu falar de minha vasta experiência, minha modesta experiência. Eu passei... eu consagrei toda a minha vida à literatura. Sempre soube, desde que era uma criança, que meu destino seria literário, quer dizer: eu me via sempre cercado de livros como na biblioteca de meu pai, quem talvez me deu essa idéia. E bem, sabia que passaria toda a minha vida lendo, sonhando e escrevendo, e talvez publicando, mas isso não é importante, não faz parte de um destino literário, mas enfim... eu fiz isso. Fiz o possível, não para ler todos os livros, como dizia Mallarmé, mas, enfim, para ler os livros de que eu gostava.

Tive consciência de que a leitura deve ser considerada não como uma carga, mas como uma fonte de felicidade, possível e fácil. Então vou contar-lhes, já que estamos falando de uma maneira amigável, espero, minhas experiências pessoais. E bem... eu caminho pelas ruas de Buenos Aires, para Biblioteca Nacional, que dirigi há tempos e que deixei depois, e, subitamente, sinto que algo vem a mim. Então espero. Esse algo chega. É talvez uma fábula, uma noção qualquer, que não concebo de forma clara, mas vislumbro sempre o começo e o fim e depois me leva a inventar o que há entre essas duas coisas. Faço o que posso. Depois sinto que essa idéia exige, digamos, um conto, um poema, um ensaio. Isso me é revelado depois...

As teorias podem ser úteis para estimular a poesia. Por exemplo, eu não creio na democracia, trata-se de uma questão estatística para mim. Mas essa idéia fez de Whitman um grande poeta. A idéia da democracia, essa estranha idéia de escrever um livro com um personagem... um triplo personagem, uma sorte de trindade. Pois o Walt Whitman de “Folhas da Relva” é o jornalista Walt Whitman que o escreve; uma imagem bastante elevada de sua própria vida e esta idéia é genial... Quer dizer que cada leitor é um pouco Walt Whitman, Walt Whitman se dirige a ele; quando alguém lê o livro pensa havê-lo escrito de uma certa maneira. E há um fato que quero assinalar, bastante estranho, e é que todo mundo imitou os frutos de Walt Whitman. Todo mundo; por exemplo, Lee Masters, por exemplo, Neruda, por exemplo, Carl Sandburg – talvez seu melhor discípulo americano –, enfim.... todo mundo imitou aquilo a que ele chegou, mas ninguém repetiu essa estranha experiência de um herói que foi três pessoas: o escritor; uma imagem glorificada do escritor e o leitor.  E bem, essa é uma maneira de trabalhar.

Porém, às vezes, meu ponto de partida foi um texto qualquer, já que, entre as experiências humanas, quiçá uma das mais belas, uma que assegura a felicidade de certa maneira, é, como o sabemos todos, a leitura. Ou, como dizia Emerson, outro grande poeta: a poesia nasce da poesia; ou, o que eu disse anteriormente: a poesia nasce da língua, pois cada língua é uma forma de sentir o mundo, cada língua é uma literatura possível, inclusive se não chega a sê-la. E bem, essa é para mim outra maneira da criação poética.

Mas há outra maneira que eu empreguei para meus modestos fins; essa é uma reflexão qualquer. Por exemplo, a palavra “inesquecível”, que eu pensei em inglês, “un-for-get-table”. Bem... comecei com essa palavra. Disse-me: todos os dias empregamos a palavra “inesquecível”... mas se algo fosse continuamente inesquecível, que se passaria? A pessoa não poderia pensar em outra coisa. Se alguma coisa fosse continuamente inesquecível, então essa pessoa se tornaria louca. Esse foi o ponto de partida para uma história que eu escrevi, pode ser que vocês a tenham lido... chama-se “O Zahir”. Trata-se de uma moeda de vinte centavos que é inesquecível. O homem que a vê se torna louco ao cabo de algumas páginas. É um conto bastante curto. Em outra ocasião, parti também de uma reflexão abstrata. Pensei nessa admirável invenção teológica da eternidade. Disse-me: na noção de eternidade se pensa que há um momento, um momento divino evidentemente – não pertence ao homem mas sim à divindade –, há um momento onde se encontram todos os momentos do tempo, quer dizer, em um simples momento da divindade se encontram todo o passado, todo o presente e todo o porvir. E bem, pensei em uma categoria mais modesta que o tempo, o espaço. Alguém pode imaginar, por que não imaginar, que em alguma parte há um ponto onde se encontram todos os pontos do universo, então escrevi uma história que talvez vocês tenham lido, “O Aleph”: eu não sei se é um bom conto ou não, já muita gente o leu e o achou... legível, digamos.

Bem, meu ponto de partida, nesses dois contos, foram essas duas idéias não muito interessantes, não muito novas que eu saiba. E, além disso, há outra coisa: cada vez que escrevi senti a emoção, a emoção de minha vida: eu creio que não se pode escrever sem emoção, sem paixão. A idéia da poesia como jorro de palavras é uma idéia de todo errônea, creio eu, uma idéia falsa. Além disso, quando alguém viveu algo, quando sentiu algo, em um homem de letras isso pede uma forma (...)

Em “A Odisséia” se lê que os deuses dão desgraças aos homens para que as gerações seguintes tenham algo que cantar. Vinte e cinco séculos depois, Mallarmé pensou o mesmo, mas ele pensou em termos de um livro, e disse: “Tout abouti à un livre”. É a mesma idéia, a idéia de que nossas experiências existem para a arte, existem para gerar outras formas de arte. Nesta arte achamos à primeira vista que talvez o infortúnio seja mais nobre que a felicidade, a derrota mais nobre que a vitória. A derrota pode fazermos pensar, enquanto que na vitória se mesclam as interjeições, a vaidade: então o infortúnio é melhor. Certamente todos temos nossa parte de felicidade e de infortúnio: mas a felicidade é um fim em si mesmo e não exige nada enquanto que o infortúnio deve ser transformado em outra coisa. Quer dizer, o infortúnio seria a matéria da arte, ou também a nostalgia, a nostalgia está ligada a uma felicidade perdida, a um paraíso perdido.    

Há um grande poeta na Espanha no presente, o grande poeta Jorge Guillén, que talvez seja o único que canta a felicidade presente. Não a felicidade como o paraíso perdido, mas como se ele estivesse no paraíso. Eu não conheço nenhum outro poeta que tenha feito isso. Whitman faz o possível para cantar a felicidade, mas a gente sente que ele era um homem triste, só, e que sua felicidade é um dever que ele se impôs, que sua felicidade é uma faina, digamos.

Eu comecei, como todos os escritores, sendo barroco. Isso é uma forma de timidez. Comecei sendo surpreendente e genial. No presente sei que não o sou. Eu queria ser Quevedo ou sir Thomas Browne ou Leopoldo Lugones e tantos outros… no presente eu me resigno a ser Borges. Que outra coisa posso fazer? Parece que, como eu, a gente se resigna a isto e eu posso ser Borges sem correr nenhum perigo.

Eu estou muito surpreso de me encontrar aqui com vocês. É uma forma de felicidade à qual eu nunca havia aspirado ou na qual eu nunca havia pensado. Alfonso Reyes me disse uma vez: nós publicamos para não passarmos a vida corrigindo os rascunhos. Isso é verdade. Quando publico um livro o esqueço, o esqueço tranqüilamente. Quando me dizem, e é uma notícia surpreendente para mim, que há bibliotecas inteiras escritas sobre mim... eu não li um único livro... eu continuo pensando no futuro... penso que é doentio pensar no passado, pensar naquilo que se escreveu. No presente, penso em meus livros futuros. Tenho 83 anos, então meu futuro não é verdadeiramente grande, contudo trato de olhar para frente e não para trás, pois isso é doentio. 

Quando eu era jovem era barroco, buscava palavras bem antigas ou trava de forjar palavras: no presente intento interferir o menos possível no que escrevo. Quer dizer, escrevo... deixo a página de lado, a releio ao cabo de algum tempo, suprimo todas as palavras ou frases que possam surpreender ao leitor. Trato de que isso flua e inclusive sou obrigado às vezes a dar essa impressão ainda que eu saiba que isso nunca fluiu, e me ponho a mudar e a corrigir, e a corrigir minha correção, e assim continuamente... Mas eu quero que o leitor, quando leia meus livros (…) os melhores são “O Livro de Areia”, “O Informe de Brodie”, “A Cifra”. São meus melhores livros, se podem esquecer os outros comodamente; eu o fiz. Eu penso que alguém que não leu nada pode começar por “A Cifra”, na poesia, e por “O Livro de Areia”, na prosa.

No presente intento ser o mais simples possível, sendo complexo mas de uma maneira furtiva e modesta, de uma maneira não evidente. Quer dizer, eu não tenho estética, não busco os temas, os temas me buscam, eu tento detê-los mas ao final eles me encontram, então há que escrever para ficar-se tranqüilo (...) Nesse momento eu publico ou não. Em geral o faço para ficar livre dos rascunhos, como dizia Reyes. Mas creio que cada tema tem sua estética.  Cada tema nos diz se ele quer que o escreva em verso, em forma clássica, em verso livre, em prosa ... creio que a estética é dada a cada tema. Há temas que exigem um romance, esses não me visitam, não creio que escreva um romance, li poucos romances, escrevi demasiados contos, talvez, e bastantes poemas também. E, repito-o, intento ser legível. Não penso no leitor, salvo no sentido de que me esforço para que a leitura seja fácil e, se possível, agradável.

Mas talvez tenha falado demais. Talvez a ocasião, as palavras que disse, não são mais que um ponto de partida para as perguntas. Estarei muito contente de responder a suas perguntas. Prometo-lhes uma só coisa: a sinceridade, não posso prometer outra coisa além disso... Enfim, amigos, obrigado.

Jorge Luis Borges/ Trad. Wanderson Lima

sábado, 2 de fevereiro de 2013

4 poemas chineses


PELA MANHÃ, RESPOSTA AO HOMEM VULGAR

Me perguntas por que vivo nas montanhas verdes;
sorrio mas não respondo, meu coração está tranquilo.
Pessegueiros e águas que fluem ficaram para trás há tempos –
tenho outro mundo, não o mundo dos homens.

Li Po (701-762?)



A BORDA DO CÉU

Sol de primavera rente à borda do céu,
à borda do céu o sol se põe.
O rouxinol tagarela como se tivera lágrimas
para molhar a flor mais alta.

Li Shang-yin (813-858)



POEMA

Estou velho, enfermo e só –
e faço minha fogueira na Ladeira Leste.
Branca, falha e hirsuta
minha barba se funde ao vento.
Frequentemente meu filhinho se deleita surpreso
por encontrar rosas em minhas bochechas.
Como poderá saber ele – sorrio –
que se estão rubras é devido ao vinho?

Su T’ung-po (1036-1101)



POEMA

As brisas da primavera varrem os prados verdes,
a chuva cessou, mas das folhas dos bambus ainda cai água.
De repente um pássaro branco aparece em cena,
rompe o Universo verde da ladeira da montanha.

P`o Yü-ch'ien (?/?)

P.S. Versões feitas a partir de traduções do espanhol e do inglês.



quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

“La nadería de la personalidad”:reflexão pioneira de Borges sobre a estética moderna


A despersonalização é um dos traços mais marcantes da estética literária moderna, pós-baudelaireana. Em vez da identificação do autor com suas criações (personagens, na prosa; eu lírico, na poesia), a literatura moderna se pauta numa gama de critérios cujo ponto comum é a negação da retórica afetiva romântica e sua entronização do eu: fala-se em distanciamento (Brecht), em fuga da emoção e da personalidade (Eliot), em fingimento e construção de heterônimos (Pessoa), em polifonia (Mikhail Bakhtin), em morte do autor (Barthes).

Jorge Luis Borges, desde suas primeiras intervenções teóricas, na segunda década do século XX, alinhou-se a esta perspectiva de uma maneira sumamente radical, pois que negou não apenas os poderes demiúrgicos do autor, mas até mesmo a consistência ontológica do sujeito. Esta destruição da categoria sujeito tem, em Borges, múltiplos pontos de referência, oriundos seja de fontes filosóficas (Hume, Berkeley, Schopenhauer), seja de tradições religiosas orientais (o Budismo), seja de fontes propriamente literárias (Mallarmé, Whitman, Macedônio Fernández). Alusões à idéia de sujeito como ilusão atravessam praticamente toda a obra borgeana, dos anos 20 aos anos 80 do século XX, e têm como marco inaugural um texto de juventude (jamais traduzido no Brasil), fundamental para entender-se o projeto estético de Borges, intitulado “La nadería de la personalidad”. Este texto faz parte de um dos três livros de ensaios que ele, em 1977, expurgou de suas obras completas: Inquisiciones (1925).

Escrito numa linguagem empolada, que Borges abominaria depois, “La nadería de la personalidad” defende a tese, certamente fruto das leituras de Hume e Berkeley, que a unidade do eu é inexistente: “No hay tal yo de conjunto. Qualquier actualidad de la vida es enteriza y suficiente”. Quem afirma que a identidade pessoal é uma possessão primitiva de “algún erario de recuerdos” supõe uma durabilidade improvável da memória. Isto sem contar com o problema a seleção: por que alguns instantes se estampam em nossa memória e outros não?

Com isso, Borges não pretende fazer desabar a segurança com que nós diariamente dizemos eu e afirmarmos a consciência do nosso ser. Essa dimensão pragmática – ele não diz, mas devemos supor – é uma ilusão necessária, basilar para enfrentarmos as situações cotidianas. Todavia, bem analisado, nem todas as nossas convicções se ajustam à dicotomia eu e não-eu, nem tal dicotomia é constante. A convicção que me faz tormar-me como uma individualidade, argumenta Borges, é em tudo idêntica à de qualquer outro ser humano.

Dentro os fatores que desmentem a unidade do eu ressalte-se o nosso passado. Para Borges, qualquer um que procure ver-se nos “espejos del pasado”  se sentirá um forasteiro (Meu Deus, isso era eu? Nossa, eu fazia isto?!)

Em busca de corroborar suas intuições, Borges cita fontes da cabala (Agrippa de Nettesheim), da literatura (Torres Villarroel), da filosofia (Schopenhauer, mas não Hume e Berkeley) e também o budismo. Tudo isto não com um propósito exatamente filosófico, mas a fim de erguer a proposta de uma estética não psicologista. Nas palavras de Borges,

“O século passado, em suas manifestações estéticas, foi radicalmente subjetivo. Seus escritores antes preponderam a patentear sua personalidade que a levantar uma obra; sentença que também é aplicável a quem hoje, em turba caudalosa e aplaudida, aproveita os fáceis rescaldos de suas fogueiras” [de “La nadería de la personalidad”, trad. minha]
        
Essa estética expressivista, dos “idólatras de seu eu”, é o antípoda da “nadería de la personalidad” que Borges aponta. Contra esta estética de inclinação romântica Borges propõe outra, de pender clássico, como ele mesmo confessa, e que se pauta na devotada atenção às coisas. Whitman e Picasso seriam os propugnadores dessa estética anti-romântica, segundo Borges.

Nunca é demais lembrar que Borges publicara “La nadería de la personalidad” em 1925, no livro Inquisiciones, quando contava 25 anos. Pouco lembrado, este texto constitui um marco da reflexão sobre a modernidade literária na América Latina e um forte vislumbre das futuras idéias estéticas de Borges, intelectualizantes e de pendor fortemente anti-expressionista.

quinta-feira, 17 de janeiro de 2013

A doença de Cosme

‎"Tive um pesadelo! Sonhei que era inteligente e as pessoas me responsabilizavam pelos meus atos". Fala de Cosme, personagem do desenho Os padrinhos mágicos. É difícil demais lidar, dia a dia, nos mais variados ambientes, com crianções de bigode que OPTAM pela burrice para fugir das responsabilidades. Nelson Rodrigues já repisava este assunto insistentemente. E a situação piorou, caro Nelson.

quarta-feira, 16 de janeiro de 2013

“Elegia de São Luís”: H. Dobal relê Gonçalves Dias


Elegia de São Luís

Indiferente ao movimento da vida,
um canto de sabiá
se despeja triste
sobre São Luís do Maranhão.
Canto, pranto, lamentação de sabiá
atravessando o dia e a noite,
atravessando o céu e a terra.

A passagem da lua,
a passagem das velas nos canais
que a maré transforma e retransforma,
a solidão das igrejas,
a ameaçada solidez destes sobrados,
nada pode vencer
a tristeza deste canto.

Este canto não vem
de uma palmeira invisível.
Vem da gaiola acima da escada
e corta a sala, o jardim, atinge a rua
onde os ônibus soluçam.
Mais ainda: atinge tudo isto
Que está sendo chamado a desaparecer.

(In: A cidade substituída)



A “Canção do Exílio”, do maranhense Gonçalves Dias, transforma-se, nessa releitura de Dobal, em elegia, canto de lamentação; o sabiá gonçalviano, um dos mais fortes símbolos do nacionalismo criados por nossa literatura, transmuda-se num sabiá solitário, apartado do povo, “indiferente ao movimento da vida”; no poeta maranhense, o sabiá canta numa palmeira: vive em harmonia com a natureza e bem pode simbolizar a relação do poeta (sabiá) como o seu chão (país). O eu-lírico gonçalviano pôde cantar, com feliz ingenuidade, os poderes da poesia e a comunhão com a pátria: o Brasil, à época do romantismo, precisava de mitos, gestados pela mente prodigiosa de seus escritores, que alimentassem o amor pátrio e nos singularizasse enquanto nação. No contexto em que se insere o eu-lírico dobalino, a situação é bem outra: o sabiá, desnaturalizado, deslocado, vive na prisão da gaiola e seu canto triste, como a elegia do poeta, parece não atingir ninguém: canto inútil porque protesto contra uma perda da memória coletiva que parece não fazer falta. Interessante notar, no poema dobalino, a ausência de pessoas; citam-se igrejas, sobrados, ônibus – elementos que naturalmente pressupõem a presença de seres humanos –, mas não se apresentam pessoas propriamente, o que reforça ainda mais a solidão do sabiá / poeta.

Octavio Paz avalia que o discurso poético, desde o final do século XVIII, tem se manifestado como rebelião; segundo Paz, “a poesia não é um gênero moderno; sua natureza profunda é hostil ou indiferente aos dogmas da modernidade: o progresso e a supervalorização do futuro”. O eu-lírico dobalino, de pendor conservador, rejeita os “dogmas da modernidade” apontados por Paz e deseja redirecionar as pessoas para a tradição, para a conservação da memória coletiva.

A “Elegia” de Dobal, assim, possibilita-nos pelo menos dois planos de compreensão. No primeiro plano, temos a denúncia da artificialização e da degradação dos bens públicos (a memória arquitetônica colonial de São Luís). No segundo plano, mais implícito, temos o tema do processo de isolamento do poeta, que não se comunica mais com o povo, não tem mais uma função social definida. Praticamente todo o livro A cidade Substituída insistirá nessas duas idéias. E, para compreendê-las mais a fundo, precisamos nos aproximar da teoria da experiência de Walter Benjamin.

Benjamin observou que o modo de produção capitalista enfraqueceu as atividades ligadas à Erfarhung (experiência coletiva) em detrimento de outro tipo de experiência, a Erlebnis ou experiência vivida, típica do indivíduo solitário. Esse arrefecimento de uma memória e uma experiência comuns resultou numa espécie de culto da novidade, que levou o pensador germânico, no ensaio “Experiência e pobreza”, a perguntar-se: “qual o valor de nosso patrimônio cultural, se a experiência não mais o vincula a nós ?” É exatamente nesse ponto – em que a tradição não nos provém de modelos seguros porque o que vale é o que é novidade – que se consolidam a informação jornalística (antípoda da experiência e da sabedoria) e o romance (narrativa de busca de um sentido e não depositório de experiências partilháveis); é aqui também que o poeta enquanto guardião da memória (papel de Dobal em A cidade substituída, e não só ali) sente o peso de sua cisão em relação à comunidade. E troca, inevitavelmente, a “canção” pela “elegia”.  

segunda-feira, 14 de janeiro de 2013

Facebook e BBB


A diferença entre fenômenos como Facebook e BBB é de grau e não de gênero.  Ambos são frutos do mesmo Zeitgeist. Portanto, criticar aquele programa global via Face sem fazer uma séria autocrítica é inútil e pouco inteligente. Há pessoas que não vão ao banheiro sem avisar pelo Face (e pelo Twitter) e mesmo assim descem o pau nos brothers. Dos mais coerentes seria preciso esperar que simplesmente deletassem seu Face. Dos menos, que fizessem uma autocrítica responsável e evitassem a antipropaganda barulhenta e moralista. Não estou tentando vetar a crítica ao programa global, mas reconhecendo que crítica sem autocrítica é uma prática cínica.