[Escrevi
este breve texto no dia em que Valente
estreou no Brasil. Como o filme venceu o Oscar de melhor animação, reproduzo
aqui minha primeira impressão do filme – impressão, aliás, que permanece firme.]
A
fórmula de Valente, novo filme da
Pixar dirigido por Brenda Chapman e Mark Andrews, não é nova: o uso da
estrutura do conto de fadas para refletir valores da sociedade democrática
liberal é um dos lugares-comuns da estética pós-moderna no cinema. Tal tendência,
repisada com insistência desde estrondoso sucesso da série Shrek, deixa implícita a ideia de que a mensagem milenar das
fábulas e contos de fada envelheceu, o que me parece uma cegueira típica do
culto presentista pós-moderno e sua falta de relativismo histórico. A mim, me
parece claro que o anacronismo deliberado que filmes como Valente exibem não visam apenas à produção da comicidade mas também
reforçam a presunção, sob diversos ângulos tola, de que vivemos numa época
melhor, mais humana, mais inclusiva.
Valente é um conto de fadas
feminista, que apresenta uma defesa das deliberações individuais sobre os
ditames prescritos pela comunidade. Merida, filha da rainha Elinor e do rei
Fergus, é criada, desde pequena, sob valores e práticas mais cabíveis, segundo
aquele modelo social, a um varão. O pai de Merida, um brutamonte ingênuo mas
muito dedicado à família, é o responsável por tal educação vanguardista da
princesa, pois a mãe, pelo contrário, é uma tradicionalista ferrenha.
Delineia-se, assim, um conflito entre as figuras arquetípicas da Mãe e da
Filha: a tradicionalista rainha quer que sua filha Merida curve-se à tradição e
casa-se com um dos pretendentes vindos de reinos vizinhos a fim de manter o
equilíbrio político entre aqueles reinos. Mas além dos pretendentes serem tolos
e desinteressantes, a princesa de cabelos ruivos e soltos (símbolo de sua
rebeldia contra os costumes e usos do reino) é uma feminista avant la lettre – e, assim, reivindica o
direito de escolher seu parceiro por livre vontade e desejo. A trama é
complicada quando Merida, ao procurar uma bruxa muito risível, causa uma
estranha transformação em sua mãe. A partir de então, o conflito dá-se não
apenas no âmbito do embate entre Mãe e Filha, mas também sobre o par Homem e
Natureza. Merida, a partir daí, precisa não apenas reconciliar-se com a mãe,
mas – temerosa missão – fazer seu pai reconciliar-se com a Natureza e superar
um antigo trauma.
É
quase dispensável falar do domínio técnico da Pixar. O esplendor visual de Valente é impecável, e os efeitos em 3D
ajudam a narrativa a desenrolar-se com mais complexidade e comicidade – não se
constituindo, como se vê frequentemente, tão só o ouro de tolo para
impressionar os incautos. No enredo, porém, há uma solução que incomoda, pelo
seu gritante simplismo. Chega a ser constrangedor o modo como os roteiristas
resolvem o problema desenrolado pelo conflito entre a perspectiva feminista de
Merida e o tradicionalismo da comunidade que a rodeia. Nenhuma comunidade de
turrões conservadores se dispõe a quebrar os laços seculares tecidos pela
tradição com tamanha facilidade!
Valente não macula o alto
padrão de qualidade que se associa, com total justiça, ao nome da Pixar
Animation. Mas me parece estranho a imersão da companhia no território já tão
visitado pelo “inimigo” (no caso, a DreamWorks). Me parece também que, pela
primeira vez, a cartilha do politicamente correto, em vez de impulsionar os
criadores da Pixar, acabou por limitá-los. Merida pode encantar, pode ser
engraçada e divertida, mas poucas pessoas sairão do cinema persuadidas de que
ela foi capaz de persuadir guerreiros turrões e tradicionalistas a comprarem
valores das democracias liberais. Essa fraqueza talvez tenha se originado do
fato de que não se queria fazer de Valente
um filme abertamente político, portanto, o humor e as soluções fáceis atenuaram
um conflito mais complexo que envolve tanto o embate entre tradição e liberdade
quanto os problemas inerentes às relações de gênero. Não digo com isso que a
defesa do feminismo e da liberdade de expressão sejam tímidos no filme; digo
apenas que as motivações políticas profundas de tais conflitos não foram
buscadas. O saldo final, em favor do filme, fica por conta do seu esplendor
visual e da comicidade cheia de subentendidos de algumas boas cenas, como a da
disputa esportiva entre os pretendentes de Merida. Saldo esse, diga-se de
passagem, bastante generoso
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