Publicado
originalmente na revista RUA [aqui].
Alfred
Hitchcock é um desses cineastas que pensa por imagens, o que Deleuze – e não apenas
este filósofo – considera a genuína vocação do cinema. Em Hitchcock, não há em
geral frases solenes, teses sociais que o filme deva ilustrar. Bem arquitetada,
a história flui, plena de pontos suspensivos que convidam o espectador a uma
recepção ativa, suplementar. Muitas vezes, porém, seduzido pelo prazer milenar de
seguir o desenrolar da trama, este espectador não repara a consciência crítica
e irônica hitchcockiana, que vai construindo, com suas escolhas formais, uma
metafísica da condição humana, cujo alicerce mais evidente vem do catolicismo,
no seio do qual o cineasta foi formado.
O homem errado (The wrong man, 1956) comprova de modo
claro essa vocação do cinema hitchcockiano de concentrar sua grandeza na
elaboração formal, sondando a condição humana pela ótica católico-cristã. O
argumento de O homem errado lembra,
em seu núcleo essencial, o de O processo,
de Franz Kafka: a imputação de culpa a um inocente, com sugestivas ressonâncias
de um paralelismo com o pecado original. O andamento que Hitchcock dá ao tema,
porém, o difere de Kafka, pelo relevo que o cineasta dá à fé do protagonista (brilhantemente
interpretado por Henry Fonda) na economia da existência humana e na produção de
um sentido para esta existência.
Balestrero,
o personagem de Fonda, é um músico que vive uma existência familiar pacata, ao
lado da esposa, que ama, e de dois filhos. O primeiro diálogo dele com Rose
(assim ela se chama), quando chega do clube em que toca todas as noites, introduz
pela primeira vez no filme um elemento bastante recorrente no universo de
Hitch: a culpa. Por mais amena que seja a conversa que levam, por mais afetivo
e compreensivo que seja Balestrero em suas declarações à esposa, sentimos ali a
raiz de um conflito, um halo de culpa que um não quer imputar ao outro, e de
remorso. O dinheiro é o problema, a matriz do remorso e dos conflitos que
fervilham sob o manto de felicidade que cobre aquela família. Neste ponto,
Hitchcock prepara um pressuposto para o seu espectador levantar hipóteses sobre
a honestidade de ambos, sobre os problemas do passado. Mas, que fique claro,
conflitos e problemas “do passado”: no presente, e no que diz respeito à
acusação sofrida por Balestrero, ele é inocente. O filme, na verdade, é a
encenação do sacrifício de um bode expiatório. Balestrero é confundido com um
assaltante, sofre as mais aviltantes humilhações de uma polícia que, imbuída de
uma neutralidade perversa, mina-lhe a dignidade impondo-lhe uma verdadeira “Via
crucis” pela cidade, a que ele é forçado a cumprir.
Entre
outras leituras possíveis, O homem errado
é um filme sobre a capacidade humana de suportar o sofrimento; não um
sofrimento qualquer, mas o padecer da vítima inocente cujo espelho é o sofrimento
do Cristo. Apesar disso, o filme de Hitchcock não é uma apologética de um
carola. Hitch trabalha num registro sutil, seja na inserção de objetos
simbólicos no quadro, seja fazendo a câmera assumir, em alguns momentos, a
perspectiva do protagonista. Por exemplo, quando Balestrero é injustamente
levado à prisão, a câmera focaliza
insistentemente o chão, captando em closes os pés e as algemas,
solidarizando-se com o estado de humilhação do protagonista; numa outra cena
menos sutil, com Balestrero na cela, a câmera gira rapidamente, simulando a
vertigem da personagem e sua indignação perplexa. Porém, uma das cenas mais
significativas, e mais interessantes do filme, é a culminância do processo de
enlouquecimento (ou um nome mais técnico que se dê) de Rose. Ofendida com o
marido, vencida por obsessões persecutórias, ela apanha uma escova de cabelo e com
ela acerta-lhe a testa e quebra o espelho. A cena é toda eivada de duplos e
contrastes, a começar pela sugestiva iluminação expressionista; dois
contrastes, porém, ganham maior relevo, em termos de produção de sentido: um
deles é o espelho, projeção da duplicidade e da personalidade fendida de Rose
e, até certo ponto, de Balestrero também: vale lembrar que ambos são dominados
por um forte sentimento de culpa pela fraqueza do outro, ou pela ingerência
financeira por que passam. A diferença é que, Balestrero, por ter fé, reage com
estoicismo diante do sofrimento, pois sabe que há um princípio organizador do
mundo, e que esse princípio está ao lado dos bons e dos justos; Rose, sem um
apoio, sucumbe ao desespero. Este contraste entre ambos é reforçado pelo outro
símbolo de grande relevo da cena: dois quadros postos na parede, próximos ao
espelho que se quebrou. Um desses quadros representa a imagem de Jesus, o outro
uma imagem “profana”, de uma bela mulher. Obviamente, trata-se de projeções de
Balestrato e Rose, dos modos sagrado e profano de se instalar no mundo, que,
segundo Mircea Eliade, são as duas modalidades básicas da experiência humana no
mundo.
Neste
contraste entre sagrado e profano, o catolicismo de Hitchcock arma uma crítica
ao modelo de sociedade individualista e centrada num padrão de vida imanente no
qual a terapêutica triunfou. Rose é internada numa clínica porque lhe faltou a
fé na qual Balestrero perseverou, e cujo ícone mais recorrente no filme é o terço
que ele sempre traz consigo. É sintomático que o verdadeiro assaltante seja
descoberto no momento em que Balestrero reza, como sugere a fusão das imagens
do protagonista e do facínora, recurso em geral “brega”, mas que nesta cena
abre um leque de possibilidades interpretativas.
É
de se ressaltar que depois de inocentado, na delegacia, Balestrero não alimenta
ódio ou desejo de vingança, seja com os ineptos investigadores, seja com as
duas mulheres que enganadamente o “reconheceram” como o criminoso. Isto é, ele
mostra-se um lídimo cristão, o que reforça que sua fé ao longo do conflito não
foi apenas uma muleta. Ao final, numa clara concessão ao público, Hitchcock usa
o recurso do letreiro e uma rápida e idílica imagem final para nos assegurar de
que Rose se curou. Curou-se, mas, porque sem fé, teve de suportar anos de
terapia.
Análises
à parte mereceriam a econômica e sugestiva música de Bernard Herrmann e a
sombria e expressiva fotografia de Robert Burks, decisivas para estabelecer o
clima pesadeloso do filme e o dilaceramento interior das personagens. O homem errado foi o único filme de
Hitchcock baseado em fatos reais; muita gente levou isso em conta em suas
análises, ressaltando, entre outras coisas, que o diretor inglês chegou mesmo a
filmar com pessoas que viveram o drama. Particularmente, não acho relevante
este fato: Hitch é artifício, forma. Filme o que filmar.
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