Rango
é um camaleão domesticado que, por um acidente, é jogado no meio de uma terra
inóspita, onde animaizinhos zoomorfizados (fazendeiros, pequenos comerciantes,
justiceiros, mistificadores e profetas) resistem à escassez de água. Perdido, Rango
terá de atravessar uma pista perigosa que, simbolicamente, representa um rito
de passagem, uma prática de purgação dos amofinamentos que a civilização lhe
trouxe. Acostumado a um espaço limitado, à comida fácil e tendo veleidades de
artista, Rango passará por uma crise de identidade cuja chave de crescimento é
a assunção plena de seu destino. Trata-se de um filme que, tendo como pano de
fundo a oposição entre natureza e cultura, associa esta, como em Rousseau, à
mentira e à simulação. Rango usa, inicialmente, seus dotes de ator para enganar
os outros, mas, ao final, sem abdicar inteiramente de seu dom, recusa as
máscaras sociais para assumir, com um forte halo existencialista, a dureza que
o destino lhe reserva.
O
diretor dessa bela animação, Gore Verbinski, o mesmo da horrenda trilogia Piratas do Caribe, não me deixou menos
que boquiaberto. Rango é operístico, e
em tudo bem orquestrado: imagem, som, roteiro e encenação convergem
harmoniosamente na criação de um mundo altamente estilizado, em que o menor
objeto ou sussurro tem sua funcionalidade. A profundidade de campo, muito
explorada, destaca a solidão do protagonista num mundo bruto e indiferente; a
luz, de um claro violento, acentua a aridez das paisagens desérticas; os ângulos
insólitos reforçam as anomalias do mundo interior do protagonista; os toques
surrealistas coroam o simbolismo da história sem incomodar pela
inverossimilhança. A atenção dos realizadores não dispensa o mais reles detalhe,
de uma gota de água aos detalhes sugestivos de uma pupila. Um cinema, sim,
suntuoso, mas construído com mão de mestre, cada quadro minimamente pesquisado.
Como
se não bastasse, Rango se arrisca no
campo minado do pastiche pós-moderno, acumulando referências e revisitando
clichês com muita ironia – mas, mesmo assim, não é nem um Shrek, com as inversões óbvias do fabulário tradicional, nem um
desses filmes-de-cinéfilo pseudocult. O pastiche se estende à música de Hans
Zimmer, linda homenagem às trilhas Ennio Morricone feitas para os spaghetti westerns altamente estilizados
de Sérgio Leone, principal fonte de inspiração de Verbinski.
Depois
de assistir a Rango, e ver a
mitologia do cowboy tão bem retomada, e ver o pedagogismo e o moralismo pusilânime
das animações-para-toda-família ser cuspida longe em prol de uma ética da
virilidade (mas não machista), e ver uma saraivada de homenagens e alusões
cinéfilas que, no entanto, antes ajudam que prejudicam a fluência da narrativa,
a vontade que tive foi de revisitar os grandes westerns. Em Rango, a
estilização e a eficácia simbólica da encenação que elevou o nome de Sergio
Leone entre os grandes diretores do cinema são assustadoramente reencarnadas por
Verbinski. Até o Homem Sem Nome, célebre
personagem de Clint Eastwood na Trilogia dos dólares, aparece (não vou estragar
a surpresa dizendo como, mas me deliciei com o fundo mítico e a ironia da cena)
destilando sua mística do dever e do destino, com seu usual rigor estóico, para
o camaleãozinho perdido. Rango tem
cheiro de Oscar.
[Texto
escrito em junho de 2011]
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