[Esta resenha saiu anteriormente na dEsEnrEdoS]
Ortega
y Gasset foi um dos primeiros críticos do especialismo, que ele identificava
como uma nova forma de barbárie. Ortega reconhecia a importância da
especialização para o desenvolvimento da ciência, mas sabia o quanto ela
mediocrizava as pessoas. O especialista, para Ortega, era uma espécie de
sujeito anfíbio, nem ignorante nem sábio, que a democracia liberal e a técnica
fizeram surgir. Não é um ignorante porque conhece as teses que circulam em sua
limitada gleba; não é sábio porque, fora de seu espaço estreito, desconhece
tudo. Ortega o chama um tanto ironicamente de um “sábio-ignorante” e vê nele,
nesse homem-massa do campo intelectual, um grande problema, primeiro por sua
arrogância habitual (é especialista, mas pensa que pode falar com autoridade de
tudo, ignorando que haja especialistas em áreas que ele desconhece) e segundo
porque este tipo emperra o desenvolvimento de certas ciências, já que lhe
falta, entre outros dons, a consciência de como seu saber se liga à sociedade.
Esta
crítica de Ortega y Gasset à “barbárie do especialismo” data de 1930 e
perece-me mais do que nunca pertinente no Brasil, onde a pós-graduação continua em expansão. Não se trata de cuspir no prato em que
comeu e condenar in totumo
especialismo. Mas, não resta dúvida, ele trouxe seus prejuízos. Um deles foi
afastar (mais ainda), pelo menos no que se refere à crítica literária, a
universidade da sociedade. Tal afastamento tem dupla motivação: a linguagem
técnica e a perda de visão de conjunto.
Mas,
como dizia o poeta Holderlin, onde crescem os perigos, cresce também o socorro.
Há focos de resistência, pelo mundo todo, contra este estado de coisas. Um
Harold Bloom, um George Steiner, um Alfonso Berardinelli, por mais diferentes
que sejam entre si, no estilo e no modo de entender o que é e qual o papel da
literatura, têm em comum o fato de se recusarem a limitar suas audiências ao
público especializado das universidades. Para eles, a literatura serve ao
homem, e não apenas aos alunos e professores de departamentos de Letras. Um
representante dessa plêiade no Brasil é Marco Lucchesi. Vejo em Lucchesi –
embora ainda esteja em processo meu conhecimento de sua obra crítica (as
traduções e as poesias eu já conhecia) – um continuador de Augusto Meyer, de
Carpeaux, de Guilherme Merquior, isto é, do modelar homem erudito que se dispõe
a exercer um papel pedagógico via imprensa e comunicação oral, desenvolvendo no
público o gosto da leitura eclética (vários gêneros, de vários países) e
desarmada de excessivos compromissos ideológicos.
Esta
semana li com prazer A memória
de Ulisses(Civilização Brasileira, RJ, 2006), obra em que Lucchesi reúne
quase meia centena de textos breves, em geral do gênero ensaio. A primeira
coisa que fiquei pensando foi como pude ter demorado tanto para descobrir o
veio crítico de Lucchesi. Lembrei de ter lido 3 ou 4 textos do livro, quando de
sua publicação em jornais de grande circulação. Mas pensei tratar-se de
colaborações eventuais do homem que já conhecia como respeitado tradutor.
Enganei-me, e o que importa agora é recuperar o tempo perdido, lendo mais ensaios
do autor.
Marco
Lucchesi é o contrário do especialista limitado e arrogante de Ortega, e
tampouco se trata de um diletante. Apesar do desgaste semântico do termo e de
seu anacronismo, diria de forma aproximativa que Lucchesi é um humanista,
alguém cuja curiosidade abrange as humanidades e uma boa quantidade de idiomas
ocidentais e orientais. Munido desse arsenal intelectual, Lucchesi opta, porém,
pelo papel de pedagogo: escreve para ensinar e deleitar (docere
cum delectare), portanto escreve de forma persuasiva e didática,
partindo das próprias experiências, não fazendo a menor questão de esconder o
entusiasmo de suas descobertas. Trata-se de um lídimo ensaísta, o estilo
equilibrando arte e erudição, a subjetividade franca mas avessa ao
impressionismo crítico, já que temperada pela erudição.
À
primeira folheada em A memória
de Ulisses, podemos nos assustar. Quem fala aí? Um biógrafo diletante? Um scholar dos mais pedantes? A lista assusta:
Ovídio, Rumi, Dante, Cervantes, Vieira, Villon, Goethe, Novalis, Ibsen, Blok,
Pasternak, Hesse, Gadda, Drummond, Calvino. Pouco? Que tal Splenger e Gibbon, e
mais ainda Montaigne, Descartes, Schopenhauer, Nietzsche, Kant, Bordieu,
Virilio e Vattimo. Some a isso reflexões sobre a tradução, o vazio espiritual
de nosso tempo, a amizade (com Nise da Silveira), a leitura e até sobre o gato.
Pois Marco Lucchesi trata de tudo isso como matéria viva: o livro, para ele,
tem uma força transcendente e os autores são como amigos. Lucchesi pratica uma
hermenêutica compreensiva, reconstruindo com cuidado e elegância
estilística o pensamento do autor que aborda, por vezes deixando-se contaminar
pelo estilo do autor em debate – o que não lhe impede, hora nenhuma, de
discordar, de exercer a crítica quando julga justa, como vemos, por exemplo, no
ensaio sobre Spengler. Surpreende, neste estilo de Lucchesi, a beleza e a
verdade de determinados juízos, às vezes expressos numa frase, mostrando que
sua paixão por Novalis, Nietzsche e Schopenhauer afinou-lhe um veio
aforismático. No texto sobre Pasternak, ao se referir ao romance russo, solta
este: “O romance russo é a épica da pietas”.
Encerra o breve texto sobre Schopenhauer (em duas páginas diz mais sobre este
autor do que na maioria das histórias da filosofia que eu pude ler!) com estas
frases: “Destruir a vontade. Trabalhar o nirvana. Superar o puro instinto, para
atingir a piedade cósmica – eis a saída possível. E, assim, numa realidade de
escombros, surge um mundo em que brilham os raios do nada, com suas estrelas e
galáxias, sobre a vida do pensamento – as maravilhosas páginas de O mundo como vontade e
representação”. No magnífico ensaio que encerra o livro, sobre a obra-prima
de Cervantes, diz a certa altura: “A derrota no Quixote atinge o sublime. E como soa estranho
nos dias atuais, de insossas vitórias curriculares, e nanotriunfalismos,
apontar o sublime da derrota. Não aquele do homem
acabado de um Papini, mas a
tensão da Esperança de um Bloch. Dom Quixote realiza a
biografia do erro. Mas atenção: trata-se de um grande erro. Coisa mais bela
e comovente do que a mera biografia de um punhado de acertos.[negrito meu]”
Naturalmente,
eu poderia acumular mais achados, em A
memória de Ulisses, em que o zelo estilístico colabora para acentuar o
brilho da verdade. Mas fiquemos naqueles. Imagino que cada leitor há de
encontrar os seus, assim como a cada leitor este ou aquele texto tocará mais
fundo. A mim, por exemplo, que não professo nenhuma paixão intensa pelos gatos,
pareceu-me constrangedor “The naming of cats”, que o autor corajosamente pôs como
ensaio de abertura. Me comoveu e me deixou feliz “Cartas da prisão” e
“Herman Hesse: felicidade”; me foi bastante instrutivo “Traduções da Divina Comédia”; achei bastante
justa a avaliação sobre Pierre Bordieu, um pensador a quem não nutro simpatia, em
“As regras de Bordieu” (outro mérito desse mesmo ensaio é a reflexão sobre a
crítica literária subjacente nele); ademais, os ensaios sobre Goethe, Ibsen,
Splenger, Montaigne, Schopenhauer, Rumi e Cervantes (Quixote) têm meu
assentimento afetivo e intelectual. E é normal que entre mais de 40 textos
alguns poucos não me tocaram, menos por culpa do autor do que por se tratar de
escritores a quem eu li pouco ou nada.
Penso
que devemos nos rejubilar pela presença, em nosso meio intelectual, de um
não-especialista que se dispõe a partilhar sua cultura universal conosco,
assumindo uma tocha pedagógica a que muita gente de talento comprovado corre
com medo, por egoísmo ou seja lá o que for. Não bastasse isso, Marco Lucchesi
partilha uma dádiva que aprendi há algo tempo a apreciar em Jorge Luis Borges e em Harold Bloom : a
capacidade de comunicar o entusiasmo perene que as grandes leituras deixam em
nossa memória.
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