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sexta-feira, 24 de maio de 2013

Alexandra (2007), de Alexander Sokurov


Uma avó vai visitar seu neto num acampamento militar, num período de guerra. Quantos narradores, na literatura e no cinema, levariam a cabo uma história com este mote sem cair em pieguice ou sem reduzir a arte à condição de propaganda?

Pois esse mote é conduzido com rara sensibilidade e contenção dramática em Alexandra (2007), do siberiano Alexander Sokurov. Alexandra faz parte de um conjunto maior, que explora as singularidades e os dilemas das relações familiares, e que a crítica costuma referir-se como ciclo de histórias familiares. Até agora vieram à tona Mãe e Filho (1997), obra-prima absoluta, e o polêmico Pai e Filho (2003), que eu ainda não vi.

No inovador Mãe e Filho, onde o diretor explorou novas possibilidades para a imagem no cinema, a moldagem era claramente arquetípica, ao passo que neste Alexandra, Sokurov equilibra com invulgar perícia as abordagens mítica e história. A história sobre a avó e o neto está localizada num espaço e num tempo bastante tangível: a fronteira da Chechênia, num período recente de guerra. Com isso, ainda que o trabalho refinado e anti-naturalista com a imagem esteja presente, há um sentido de urgência nela que dá aos planos um tom de documentário. Estamos afastados da lentidão estratégica e do diálogo com a pintura comum ao cinema de Sokurov, e levado a um resultado único na história do cinema com Mãe e Filho. A câmera, em boa parte do tempo, adere à perspectiva da avó (vivida por Galina Vishnevskaya), acompanhando-a em suas descobertas com a mesma curiosidade e urgência de novas descobertas. Com isto, Sokurov evita uma perspectiva onisciente, que permitiria um julgamento peremptório sobre aquela guerra (ou mesmo sobre a guerra). Alexandra (a protagonista) é a sonda que esquadrinha aquele microcosmo sem respeitar normas internas ou fronteiras – chega a conhecer e fazer amizade com pessoas do outro lado da fronteira, na Chechênia, mas nem por isso se indispõe com os soldados russos, que, visivelmente saudosos e carentes, tratam-na como mãe ou avó.  Ela é o ponto cego que permite ao cineasta ver sem se comprometer demais.

Como é costume no cinema de Sokurov, não há em Alexandra propriamente um enredo com um conflito a resolver, mas “ilhas” dramáticas, situações-limite construídas pelo cineasta numa atmosfera de poesia e intimidade (não há, porém, nessas situações-limite aquele tom apolítico nem a necessidade de um confessar tudo, nem que o mundo desabe, corriqueiro em Dostoievski, a quem o cineasta se confessa leitor e admirador).  Em Alexandra, o motor da história é a presença desestabilizadora de uma avó que, à revelia talvez de seu desejo, torna-se gradativamente a avó daquele acampamento, desnudando o que no fundo aqueles jovens soldados são: meninos carentes, sem uma perspectiva de vida bem delineada. É de grande sutileza a postura anti-bélica de Sokurov: não há discursos edificantes contra a guerra nem cenas com vítimas fragilizadas que perderam um membro ou se feriram gravemente. O que se mostra, nunca de forma escancarada, é como a guerra impede o desenvolvimento de dons potenciais ou embrutece quem nem chegou a descobrir seus dons. Mas, reiterado, Alexandra não nem caricato nem megalomaníaco. Felizmente, Alexandra não é mais uma dessas pacifistas do Greenpeace ou similares.

Freqüentemente, vemos filmes que, de forma paradoxal, são contra a guerra, mas se comprazem em mostrá-la na tela com uma curiosidade pornográfica. Alexandra não é isso: é antes de qualquer coisa um filme de bastidores, que nega a guerra apostando que o espectador se contentará com sua presença pressuposta. Ou seja: é o filme de uma pessoa madura o suficiente para saber que não precisa enriquecer o arquivo sanguinário das cenas de guerra, arquivo este que já é patrimônio de qualquer adolescente que viva onde exista ao menos uma televisão.

Falei do solo histórico em que o filme se planta e como discute a guerra, mas há esta outra questão crucial na obra: a moldagem arquetípica em que se enquadra a relação entre a avó e seu neto. Sobre este ponto Alexander Sokurov não constrói um discurso positivo, opiniático, e nem seria preciso. O lugar-comum já diz: avó é mãe com açúcar. Interessa mais (e isso ele faz de forma inigualável) explorar as situações sensoriais em que esse amor desmedido se apresenta, entre frases banais e declarações exageradas; entre olhares silentes (que lêem na roupa e nos detalhes do corpo qual a situação do ser amado) e abraços sem fim. Em Sokurov, o amor familial atinge tal intensidade que alguns críticos viram ali o aceno constrangedor do fantasma do incesto. Nunca é demais lembrar que Sokurov é um russo, e que o ressentimento é algo humano, demasiado humano. Mas talvez este que fala esteja cego, como estava o diretor russo quando filmou, pela luz amorosa que emanava de seus avós.

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