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terça-feira, 28 de agosto de 2012

Idiots and Angels (EUA, 2008), de Bill Plimpton


Idiots and Angels (2008) representa, na obra do animador americano Bill Plimpton, um salto do sarcasmo ao “american way of life” a uma paragem nova, uma abertura a questões da natureza humana que resvalam em assuntos de natureza religiosa e metafísica, como a graça e a presença do mal. Concebido fora dos grandes estúdios e num esquema de produção quase familiar, Idiots and angels se alinha ao filão do desenho adulto, contrastando o traço “primitivo” a uma atmosfera densa e ricamente alegórica. A premissa do filme é de uma simplicidade exemplar: narra-se a história de um brutamonte mal-humorado, metido em negócios ilícitos, cuja vida prosaica se desenrola entre a cama e um bar decadente; num belo dia, porém, o insólito irrompe: nasce-lhe um par de asas. Não bastasse o absurdo de tal fenômeno, acrescente-se o fato de que estas asas literalmente obrigam o carrancudo a ser bom, a fazer o bem.

Resumindo assim o enredo, pode-se dar a impressão a quem não assistiu ao filme que se trata de uma banal história de redenção, com um fundo moralista. De fato, trata-se de uma história de redenção, mas a sinuosa trajetória rumo à libertação do protagonista passa ao longe de qualquer facilidade. Trata-se, na verdade, de uma narrativa alegórica eivada de símbolos e com uma atmosfera situada entre o expressionismo e o surrealismo. O nó do enredo é a luta agônica do protagonista entre sua natureza intrinsecamente má e a graça recebida (o par de asas) que o forceja a “renascer” um outro homem; há porém um pano de fundo ou norte narrativo que constitui uma deliciosa e ácida sátira social. O núcleo mais persistente dessa sátira é o bar freqüentado pelo homem mal-humorado, um verdadeiro microcosmo habitado por tipos “vencidos pela vida”. Há a rameira envelhecida e solitária; a bela sonhadora que caiu nas mãos de um insensível e atende no bar; e o ganancioso e sem escrúpulos dono do bar e cônjuge da sonhadora. Fora deste ambiente, há o médico sem ética que sonha retirar as asas do homem e transplantá-las em si, para obter os aplausos da comunidade médica e o amor de sua secretária. Aqui neste reduzido mundo Plympton reconstrói a imagem das baixezas e dos sonhos redentores de uma humanidade que, aparentemente, merece menos nosso asco que nossa piedade.

Impressiona como Bill Plympton constrói sua alegoria com total liberdade poética, sem amolgar seu material a nenhum ditame ideológico, embora dialogue de perto com a doutrina da graça (Santo Agostinho) e, visualmente, com a escola expressionista e, até certo ponto, a surrealista. Essa liberdade exorciza qualquer previsibilidade por parte do interlocutor: a história permanece aberta e misteriosa o tempo todo. Mesmo após seu final, não conseguimos discernir a fronteira do onírico com o real. Plympton nos conduz, com incomum poder de sedução, a oscilarmos, hesitantes e estupefatos, entre o mal-estar causado pelas situações insólitas e inexplicáveis, diria kafkianas, e o humor corrosivo que abranda mas felizmente não dilui a visceralidade das imagens que invadem nossa retina. É tentador erguer Idiots and Angels àquele panteão, tão acrescido nesta última década, das obras-primas do cinema de animação.

Dois detalhes devem ser acrescentados. Em primeiro lugar, que o filme prescinde de diálogo e, mesmo assim, nada perde em clareza e dinamicidade, graças ao traço despojado mas exato de Plympton; em segundo lugar, cabe destacar a música, rigorosamente convergente com o enredo, pensada, sem dúvida, para agregar novos dados à compreensão da psique transtornada dos personagens.

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