A
poesia cinematográfica, freqüentemente, se alimenta de desgraças, individuais
ou coletivas, com a mesma falta de cerimônia com que o urubu se alimenta de
carniça. No caso do iraniano Majid Majidi, o repasto de miséria chama-se
cegueira, tema do qual ele extraiu por duas vezes o néctar da poesia. A falta
de cerimônia de Majidi não é tanto a da falta de alteridade (chineses em filmes
americanos de artes marciais; índios em westerns
John Ford; evangélicos em filmes brasileiros etc), mas a do bom-moço humanista
que quer nos convencer com lágrimas. Majidi chega ao vício pelo excesso de
virtude, atinge involuntariamente o cômico, em seus momentos ruins, pelo
excesso de drama. Mesmo seus críticos mais ferrenhos devem admitir que ele
domina a gramática do melodrama poético. E não falo apenas da poética da
imagem, mas também a do som, que em Majidi é sempre trabalhadíssima
O
primeiro filme de Majid Majidi que tematiza a cegueira (talvez não seja o
primeiro, pois há dois filmes do cineasta que não vi) é A cor do Paraíso (1999), onde o virtuosismo do diretor produz cenas
antológicas ao lado de outras que osculam involuntariamente o cômico. A cor do Paraíso é uma quase-obra-prima
que nos deixa um sentimento de frustração pelo que poderia ter sido, não fosse
o excesso de brilho técnico, a floresta de símbolos e duplos e um final de
gosto duvidoso que pesam sob um enredo simples. Entre luzes e sombras veio 6 anos depois de A cor e, sem dúvida, esse intervalo serviu para o diretor enxugar
sua maquinaria. Isto, porém, não garantiu que brotasse a obra-prima. O avanço
do segundo filme em relação ao primeiro dá-se essencialmente em eficácia. Entre luzes e sombras permite com que a
sutileza permaneça quase sempre (mas quase mesmo) sutil.
As
histórias de Majid Majidi, como eu disse em outro texto, se situam em algum
ponto intermediário entre a fábula e a parábola religiosa. Majidi, talvez
convenha lembrar, segue a doutrina Sufi, vertente mística do islamismo. A
moralidade e o sentido de redenção atravessam sua filmografia de ponta a ponta e
isso, pelo menos no Brasil, desagrada à crítica, por lhe parecer simplificador
demais, talvez otimista demais. Ser do mesmo país de Abbas Kiarostami torna a
visão de mundo moralizadora de Majidi, bem como o convencionalismo clássico de
seus planos, um tanto mais incômodos.
Mas
Majidi segue sem se incomodar, e faz bem. Encena uma história cuja estrutura
profunda conhece bem com recursos que domina como poucos. O resultado é Entre Luzes e Sombras: uma fábula sobre
a redenção boa de assistir, que revela seu tom de melodrama poético desde a
primeira tomada. A novidade aqui é que Majidi abandona as crianças e a pobreza
para abordar a vida de um professor universitário cego que, depois de trinta e
tantos anos, passa por uma cirurgia na França e começa a enxergar. Mas, se isto
à primeira vista foi considerado uma bênção, aos poucos se torna fonte de
perdição: para usar uma imagem de gosto bastante duvidosa, abrem-se os olhos da
face, fecham-se os olhos da alma. O ex-cego resignado desgarra-se de Alá,
ardendo de orgulho e constrangido pelo trabalho extra que deu aos outros quando
cego, abandona a profissão, despreza a família, peca por omissão (assiste a um
furto calado) e adultera (em pensamento). De fato, para o filme, o olho é a
janela do pecado.
Tecnicamente,
Majidi é muito feliz nas passagens mais essenciais da película: quando altera a
perspectiva objetiva da câmera para um foco subjetivo, colado na perspectiva do
protagonista, a fim de acentuar o contraste de percepção do mundo entre o cego de
outrora e o ex-cego de agora; quando dilata o tempo na cena do aeroporto para
intensificar o drama do ex-cego que tenta descobrir na multidão que são sua
mãe, sua esposa e sua filha; quando repõe a formiga, símbolo da conformidade
social e da ação de massa, no desfecho, deixando a sugestão que Alá deu o dom,
tomou-o para educar o rebelde e devolveu-lhe quando este aprendeu, pelo
sofrimento, a usá-lo para o bem.
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